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CYRO MARTINS — UM CLÁSSICO DO RIO GRANDE*  E-mail
Fortuna Crítica - Artigos

Carlos Jorge Appel **

 

“Eram quatro moços vestidos à gaúcha: eles traziam chapéus arredondados de abas largas; trajavam chilipás com franjas; coletes vermelhos com botões amarelos, chales de cachemira velhos amarrados à cintura, excetuando um deles, que cingia uma linda e bordada guaiaca; e traziam ainda grandes e pesadas chilenas de prata; estavam armados à rio-grandense, com espada, duas pistolas, uma faca, uma carabina e o laço e as bolas, que estavam seguras aos tentos dos cavalos; seus aspectos eram guerreiros; em seu todo, apresentavam uma lhana franqueza e alegria bem pronunciada. Três dentre eles tinham cabelos ruivos em cabeleiras pendentes sobre os ombros, exceto o que cingia a guaiaca, que tinha cabelos castanhos também da mesma forma dispostos.”1

Esses quatro moços vestidos à gaúcha, “de aspectos guerreiros, de lhana franqueza e alegria bem pronunciada” terão saído de alguma história de Simões Lopes Neto, de Alcides Maya, de Darcy Azambuja, de Cyro Martins, de Ivan Pedro de Martins, ou de Erico Verissimo? A descrição é sóbria, sintética, objetiva nos detalhes e bem posta. Só o fato de citarmos escritores de diferentes épocas e estilos, nos leva a perguntar o que há de comum entre tantos autores citados, já que todos eles se ocuparam de relatar e recriar o que aconteceu no Continente de São Pedro do Sul a partir do século XVIII.

O trecho citado é de O corsário, romance de Caldre e Fião, publicado em folhetins, de 1849 a 1851, no jornal O Americano, do Rio de Janeiro. O mesmo Caldre e Fião já havia escrito o romance A divina pastora, em 1847, portanto, há 160 anos, e que permaneceu por muito tempo desaparecido, até ser redescoberto por Adão Monquelat, em 1992, em Montevidéu.

Mais do que delinear, na sua descrição, o futuro “monarca das coxilhas” ou se aprofundar na arqueologia do passado, Caldre e Fião, ao desenhar os primórdios de nossa formação, inaugurava uma vertente poderosa na perspectiva da história literária do RGS.2

 

1 – Cyro Martins e sua geração

 

Na recriação artística da realidade, na construção do universo ficcional ou de um certo modo de contar uma história, os pontos de vista de um autor não podem ser considerados frutos de uma decisão pessoal, dependente apenas da sua subjetividade. Incidem, nesse modo de figurar a realidade, os condicionamentos histórico-culturais, os hábitos, os costumes, assim como os limites físicos e geográficos presentes no momento da criação.

A ficção de Cyro Martins, do conto ao romance, vai se inserir numa tradição marcada por condicionantes que remontam às obras de Caldre e Fião e a outros autores marcados pelo Romantismo tardio do século XIX, até chegar aos escritores do início do século XX, quando surgem as obras de Simões Lopes Neto e de Alcides Maya.

De que modo Cyro Martins e seus companheiros da geração de 30 realizaram a leitura de seus antecessores, como souberam auscultar, haurir e operar o legado cultural que lhes coube, é o que os estudiosos vêm, há muito tempo, analisando e codificando. A geração de 30 do Rio Grande do Sul não foi excepcional apenas na literatura, onde aparecem Erico Verissimo, Dyonélio Machado, Ivan Pedro de Martins, Vianna Moog, Aureliano de Figueiredo Pinto, Pedro Wayne, Reynaldo Moura e Cyro Martins, todos ficcionistas, ao lado dos poetas Mário Quintana e Lila Ripoll; conviveram eles com artistas plásticos da importância de Vasco Prado, Carlos Scliar, Iberê Camargo, Xico Stockinger, Glênio Bianchetti e Danúbio Gonçalves. Na música erudita, despontaram nomes como Luís Cosme, Esther Scliar, Armando Albuquerque, Natho Henn, Paulo Guedes e Bruno Kiefer. Esses compositores ajudam a delinear um quadro de época fora do comum. Na música popular sobressaía Lupicínio Rodrigues, amigo de todas as horas Reynaldo Moura e de de Ivan Pedro de Martins. Na outra ponta, o humor de Apparício Torelly, mais conhecido como Barão de Itararé, ironizava o modo de vida dos seus pares e dos políticos de plantão. A avaliação crítica, na área da literatura, era realizada por pensadores como Carlos Dante de Moraes e Moysés Vellinho, que davam continuidade ao trabalho iniciado por Augusto Meyer.

O aparecimento desta geração de 30 não pode ser visto como algo aleatório, senão fruto de uma sociedade estruturada com base em princípios sólidos e projetos ambiciosos. Não apenas a OSPA surgia para executar as obras dos compositores dessa geração, mas a Globo, em cujas oficinas foram impressos os livros de praticamente todos os escritores de 30, se transformara na maior editora do país. E o Rio Grande do Sul, com a aliança feita por Getúlio Vargas, iria participar de modo efetivo, por várias décadas, das decisões do Poder Central.

 

2 – Literatura gaúcha do século XIX

 

Numa rápida retrospectiva, podemos situar a gênese da ficção gaúcha nos dois romances de Caldre e Fião, A divina pastora, de 1847, e O corsário, de 1851. Convém observar que o gaúcho descrito no início deste trabalho jamais transpõe o plano secundário da intriga do romance; o plano principal é concedido a Bento Gonçalves, a quem Caldre e Fião atribui afabilidade e natural harmonia, presença agradável, trato e maneiras delicadas. Parece ter como propósito distanciá-lo do tipo gaúcho comum: “Ele não parecia um oficial de guerrilhas acostumado ao trato grosseiro dos gaúchos, e à cavalheirosa altivez dos monarcas, mas sim um homem educado nos salões polidos e magníficos das cidades”. Fica evidenciado que Caldre e Fião não simpatizava com os farrapos nem com as causas que motivaram a Revolução Farroupilha, ocorrida quatro anos antes da publicação de O corsário.

 

Este gaúcho visto à distância por Caldre e Fião seria mitificado tanto por José de Alencar em O gaúcho, publicado em 1870, transformando-se no “monarca das coxilhas”, quanto por Apolinário Porto Alegre em O vaqueano, de 1872.

Pouco antes, em 1868, havia sido fundada a Sociedade Partenon Literário, que não seria apenas uma entidade literária, mas um pólo cultural de congregação social e política, cujas idéias apareciam numa revista mensal, símbolo da efervescência da época e cujo mentor exponencial era Apolinário Porto Alegre.

 

Em 1874, surge a novela A mãe do ouro, de Vítor Valpírio que, no seu conto, Pai Felipe, analisa a miserável vida do negro nas charqueadas gaúchas, tema que precede a narrativa O negrinho do pastoreio de Simões Lopes Neto e que apareceria, também, em Xarqueada, romance de Pedro Wayne, de 1937.

Em 1877, Luís Alves de Oliveira Belo publica o romance Os farrapos, em que condena a rebelião separatista caracterizada como “verdadeiro desastre para a bela e opulenta província”. Mas ressalva a figura do campeiro: “O monarca da coxilha é qual o grifo da fábula: inteligência aguda e larga, como o instinto da águia, a força ágil e robusta, como os músculos do leão. Afeito ao descampado imenso de suas planícies natais, seu olhar tem um alcance enorme e claro; a alma tem, como o olhar, a expansão ampla da luz.”

 

Em 1879, o alemão naturalizado brasileiro, Carlos Jansen, observador de costumes, escreveu uma pequena novela intitulada Patuá, em que alguns personagens urbanos vão observar o dia-a-dia de uma fazenda à margem da Lagoa dos Patos. Suas análises e descrições se caracterizam pela contenção e suas impressões constituem excelente fonte de informações que ocorrem ao longo de uma romântica história de amor.

Em 1897, Luís Araújo Filho, que usava o pseudônimo LAF, lança Recordações gaúchas pela Livraria Coqueiro, de Alegrete. Coube a Guilhermino Cesar resgatá-lo como escritor, colocando-o na galeria de nossos melhores regionalistas, ao lado dos que renovaram a “prosa gaúcha legada pela gente do Partenon”.

Nesses escritores regionalistas que vimos até agora, predominava a visão romântica da realidade, cuja conseqüência seria a idealização da figura do gaúcho como um centauro ou monarca dos pampas, que se transformaria em clichê literário. Já Recordações gaúchas de LAF é um livro com características realistas, “menos novela do que crônica romanceada”, no dizer de Lúcia Miguel-Pereira em Prosa de ficção.3 Registra a paisagem, os costumes e o linguajar do homem do campo, despindo-se, nas suas descrições, das idealizações românticas, para inventariar a vida da campanha. Flávio Loureiro Chaves, no seu excelente Simões Lopes Neto 4, onsidera que o vaqueano “contador de causos”, transportado para o núcleo estrutural do discurso, constitui uma inovação e aparece pela primeira vez exatamente aqui, nas Recordações gaúchas de LAF.

“Antigo soldado e peão de estância dos Borbas”, eis aí um antecedente direto do personagem Blau Nunes de Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto.

Se estamos tentando buscar uma perspectiva geral da formação da literatura regionalista do Rio Grande do Sul, para situar a ficção de Cyro Martins, importa verificar algumas constantes que predominavam nos escritores do século XIX.

A primeira característica comum a todos eles, com exceção de Carlos Jansen, com sua novela Patuá (1879) e de Luís Araújo Filho com Recordações gaúchas (1897), é a visão romântica do pampa, seguindo o modelo de O gaúcho de José de Alencar. Conseqüência dessa visão romântica será a idealização do homem do campo, mitificando-o, transformando-o em guerreiro, campeador, em “centauro dos pampas”, em “monarca das coxilhas”, sempre cercado de uma aura heróica, tendo como pano de fundo a Revolução Farroupilha (1835-45). O terceiro aspecto a ser observado é a ausência do realismo, já vigente no centro do país desde 1870. Augusto Meyer, no seu Guia do folclore gaúcho 5, lamenta esse fato, a falta de naturalidade e de senso de realidade nas obras da maioria dos escritores gaúchos do século XIX, exceção, já assinalada, de Patuá de Carlos Jansen e de Recordações gaúchas de Luís Araújo Filho, com matizes realistas já evidentes.

A sobrevivência literária do modelo romântico de ficção entrava em contradição e descompasso com a realidade. Talvez porque o mito do monarca das coxilhas servisse à ideologia conservadora; talvez devido às guerras externas, como a do Paraguai e as revoluções internas, que isolavam a província do país e lhe causavam inércia cultural, é que a sua permanência tenha sido tão prolongada.

3 – Início do século XX – Simões Lopes Neto e Alcides Maya

 

Esse panorama se modifica quando surgem, nas primeiras décadas do século XX, as obras de Alcides Maya e de Simões Lopes Neto. Alcides Maya, por sua atuação na imprensa, por ser líder político e membro da Academia Brasileira de Letras, até falecer, em 1944, no Rio de Janeiro, manteve sua aura de intelectual a pleno, em especial no Rio Grande do Sul.

Simões Lopes Neto, “escritor municipal”, segundo Carlos Reverbel, mergulhava no esquecimento imerecido e só a edição crítica de Contos gauchescos e Lendas do Sul da Editora Globo, em 1949, iria trazer de volta e perenizá-lo como um dos fundadores da literatura do Rio Grande do Sul. A partir deste fato, cresceu a sua fortuna crítica, com Carlos Reverbel, Aurélio Buarque de Holanda, Augusto Meyer, Moysés Vellinho, Guilhermino Cesar e, mais recentemente, com os trabalhos de Lígia Chiappini, Regina Zilberman, Aldyr Schlee e, sobretudo, com as análises — hoje referências imprescindíveis — de Flávio Loureiro Chaves.6 Deve-se a ele a brilhante análise da presença da obra de Simões Lopes Neto na trilogia O tempo e o vento, e de como ali aconteceu um verdadeiro diálogo de épocas, construído de maneira magistral por Erico Verissimo em sua obra-prima.

 

Já a obra de Alcides Maya ficaria marcada por acirrados debates, envolvendo críticos do Rio Grande do Sul, em que se acusava Alcides Maya por sua visão nostálgica do campo, eivada de certo romantismo e, sobretudo, por uma linguagem caracterizada por excessos verbais. Caberia a Marlene Medaglia e a Léa Masina, na sua obra Alcides Maya — um sátiro na terra do currupira 7, reavaliar a importância de Alcides Maya enquanto romancista e contista, além de ensaísta de mérito, em especial com Machado de Assis — algumas notas sobre o humour. 8 Augusto Meyer, em artigo célebre “— É, preciso reler Alcides Maya” — chamava a atenção para a importância da sua obra.

Ainda numa linha claramente simoniana, Darcy Azambuja teria seu No galpão, volume de contos, premiado pela Academia Brasileira de Letras, em 1925.

Como Cyro Martins absorveu e releu toda essa tradição? Que tipo de diálogo manteve com a obra de Simões Lopes Neto e Alcides Maya e com os que o precederam?

Teríamos uma visão incompleta da importância da tradição na obra de Cyro Martins se não lembrássemos que ele, como a maioria dos escritores de sua geração, leu os uruguaios e argentinos, em especial Henrique Amorim de La carreta, o Martín Fierro de José Hernández, o Facundo Quiroga do Sarmiento, os contos de Horácio Quiroga e o clássico Don Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes, entre outros. Convém lembrar que a primeira tradução de Don Segundo Sombra para o português é de Augusto Meyer.

 

O fato de Cyro Martins ter saído cedo da campanha, por decisão paterna, para estudar no Colégio Anchieta, em Porto Alegre, foi decisivo na sua carreira como ficcionista e psiquiatra. O que teria levado o estudante Cyro Martins a ler A educação sentimental ou Madame Bovary de Flaubert nas férias, à sombra dos cinamomos, entre outros tantos clássicos da literatura universal, senão a convivência, em Porto Alegre, com professores e amigos com ambições culturais e socioeconômicas de outro nível que não aquele predominante no campo? Parte dessa história está em Um menino vai para o colégio, que há pouco alcançou sua versão cinematográfica.

Até que ponto a leitura dos clássicos europeus não terá levado Cyro Martins a pensar desde cedo na relação entre o regional e o universal? Até que ponto a fronteira, seus tipos, costumes e espaço físico alcançariam expressar o que há de mais perene no ser humano?

 

É num memorável artigo publicado em 1994, com o título de “Regionalismo, Modernismo e o surgimento do romance de 30”, presente em Páginas soltas, que Cyro se posiciona ante o legado recebido e analisa a obra de Simões Lopes Neto e de Alcides Maya. Reconhece, na obra de Simões Lopes Neto, por um lado, a consolidação de um passado mítico e, ao mesmo tempo, uma expressão nova, original, que viria universalizá-la.

É na linguagem, pois, que reside a universalidade da obra de Simões Lopes Neto. Nele Cyro Martins detecta a tradição e a instauração do novo simultaneamente. Mais que a representação do regional, importa a expressão literária. Cumpre-se na linguagem a dialetização do real. Esta idéia torna-se a cada dia mais clara para Cyro Martins na medida em que avança na elaboração de suas obras.

 

4 – Cyro Martins: a tradição e sua ultrapassagem

 

Na esteira de Simões Lopes Neto e de Alcides Maya, Cyro Martins ainda vai pagar algum tributo à tradição nos contos iniciais de Campo fora. Porém muito cedo começa a se questionar sobre o que fazer para renovar e atualizar o regionalismo. Primeiro, incorpora os princípios de Modernismo, com sua permanente pesquisa estética, a simplicidade de expressão, a simpatia pelos assuntos cotidianos. O seu projeto é também o da geração de 30: substituir a idealização e os clichês românticos pelo enfoque realista. Cyro entende que seu regionalismo deve expressar um novo tempo e que por isso deverá ser distinto de tudo o que o precedeu.

Está claro que Cyro Martins buscava um ponto de ultrapassagem para uma nova etapa de sua literatura. Bastava, para tanto, mudar de enfoque, redesenhar as paisagens, tipos e espaços físicos?

 

Em “Visão crítica do Regionalismo”, ele afirma: “O regionalismo que se nutria apenas da estância entrou em crise. Com efeito, a estância deixou de ser aquele espetáculo permanente, brioso e bárbaro, de risco, de coragem, de emulação. Tudo que a cerca, agora, é monótono. Os rebanhos são dóceis, os peões passaram a chamar-se operários rurais, o patrão acompanha pelo rádio, com o mapa diante dos olhos, as manobras no “front” europeu, e a sua família raramente agüenta mais de um mês ou dois o tédio da fazenda.

Como se vê, não persistem mais as condições humanas que faziam da campanha rio-grandense uma existência à parte, original, pitoresca. Além disso e em conseqüência disso, é fato conhecido por todos que a nossa campanha dia a dia se despovoa, não em benefício da cidade, mas para sobrecarga da cidade. O marginalismo é a expressão mais dramática dessa migração caótica, que por vezes assume as características abomináveis do enxotamento”.

 

O historiador Décio Freitas, em seu livro A crise do capitalismo pastoril, analisa o fim de um ciclo econômico na campanha gaúcha e mostra as fissuras no sistema tradicional de produção, causa da ataraxia geral nos campos e estâncias do Rio Grande. Talvez a solução estivesse na biotecnologia, talvez a planta econômica devesse ser modificada. A decadência, no entanto, se mostrava um fato irreversível. A obra de Cyro Martins evidenciava a paralisia e o esvaziamento dos campos e a migração inevitável dos peões para a periferia das cidades, cujo símbolo era Chiru, personagem central de Sem rumo.

O término da I Guerra Mundial (1914-18) ocasionaria a crise e o fechamento do Banco Pelotense, das charqueadas e dos frigoríficos da fronteira. Cyro Martins, no calor da hora, soube fazer a leitura apropriada desse mundo em ruínas, ao dizer: “Pesa-nos a dura consciência da realidade”.

 

Estão bem delineados, nessas observações do autor, os fundamentos da sua trilogia do gaúcho a pé, que começa com Sem rumo, em 1937, continua com Porteira fechada, em 1944, e culmina com Estrada nova, em 1954.

Diz o autor no prefácio da oitava edição de Sem rumo (1997): “Essa trilogia, que não nasceu trilogia, mas que, sem intenção premeditada, ao longo do seu e do meu caminho foi adquirindo essas características, enriqueceu-se de densidade humana de livro para livro, a ponto de eu agora poder dizer, sem exagero, que quase todas as figuras representativas das diversas camadas da população da campanha rio-grandense e das cidades estão, aí, em desfile, com o seu pitoresco, com as suas altanerias, com seus trapos, com suas humilhações, enfim, com os seus aspectos formais e essenciais, principalmente”.

Terminado o ciclo do gaúcho a pé, Cyro pôde se ocupar, agora de modo determinado e, por vezes, obsessivo, com os aspectos formais e essenciais de sua obra. Costumava, irônico, dizer que a vida lhe dera cancha, para reavaliar tudo o que escrevera, e projetar com calma seus próximos livros.

 

5 – O salto ontológico

Sabia, também, que o ciclo do gaúcho a pé se tornara algo tão marcante, que esse viés o marcaria, a ponto de prejudicar a compreensão mais ampla e profunda de sua obra. Consciente desse impasse, buscou superá-lo. O conjunto de sua obra é que iria balizar o seu trabalho. O regionalismo, uma questão malresolvida na crítica literária brasileira até o aparecimento de Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, constituía um rótulo inconsistente e inconveniente para avaliar o valor de sua ficção.

Aos poucos, com o aparecimento de obras como A dama do saladeiro (contos, 1980), O príncipe da vila (novela, 1982) e Na curva do arco-íris (romance, 1985), a crítica passou a perceber que a sua vinculação com a campanha se fazia no sentido antropológico, como bem observa José Clemente Pozenato em “Cyro Martins foi uma figura que traçou caminhos para diversas gerações”.9 Ou seja, contar a história de pessoas que vivem num espaço fronteiriço serve para — como em qualquer outro lugar do mundo — desvelar o homem que ali vive.

A fronteira é seu espaço e sua história, mas é também a de todos os gaúchos que ali vivem. Sua imaginação é muito marcada por esse espaço, que é seu cenário. Mas os limites espaciais e temporais logo se transformam em metáforas, que indicam a busca de um significado. Isso vale para Enquanto as águas correm, também para O príncipe da vila, Na curva do arco-íris e Um sorriso para o destino, seu último livro de ficção.

Percebemos, então, que os limites do mundo físico constituem metáforas mais amplas de experiências humanas fundamentais. O território fronteiriço, nessas obras citadas, agora funciona numa outra dimensão, cada vez mais acentuada, como metáfora da existência humana. Assim, o cenário da estância é um elemento importante para a criação de um clima dramático, de tensão ou distensão da narrativa e funciona como um conjunto de metáforas para o comportamento das personagens.

 

A obra de Cyro Martins da primeira fase, em especial a trilogia do gaúcho a pé, apresenta um acentuado cunho sociológico. É o autor dando voz a quem está à margem do sistema.

Cyro começa, a partir daí, um processo de deslocamento da sua ótica funcional. Não é por ser gaúcho fronteiriço que o personagem sofre, mas por ser homem, como qualquer outro. No prefácio do romance Sombras na correnteza, Cyro observa: “Quanto me surpreendi ao descobrir os rincões explorados da minha terra e da minha gente, à medida que troteava ao fundo de mim mesmo”. Cyro mudou seu processo de criação: agora sua gente e sua terra aparecem como busca pelo entendimento da existência. Antes era o quadro social que predominava na narrativa; agora essa visão evolui para a complexidade psicológica das personagens. O príncipe da vila constitui seu exemplo mais acabado do salto ontológico em sua obra. Ali transparece a reflexão sobre a experiência humana como um todo.

Os marcos do regionalismo foram ultrapassados. O conjunto de sua obra revela o ser humano no limite de suas possibilidades.

Cyro Martins elegeu uma metáfora de Sófocles como princípio ético: todos recebemos um determinado potencial, simbolizado num dardo que precisamos arremessar. Cabe a cada ser humano arremessá-lo o mais longe que puder. Essa será nossa medida, esses serão nossos limites e possibilidades. Isso significa que cabe, a cada um de nós, superar-se a si mesmo.

E, para fim de conversa ou de charla, como ele gostava de dizer, vale a observação de Tristão de Athayde: “Cada tempo tem a sua eternidade própria: descobri-la é o segredo de cada escritor”. Foi o que Cyro Martins fez, ao descobrir que o sentido dessa eternidade seria dar corpo e forma à ultrapassagem dos limites do mundo regional em busca do universal, do perene e eterno no ser humano.

 

* Texto apresentado no XXIV Seminário de Crítica do Rio Grande do Sul – PUCRS-FALE - 04 a 06/12/07

**Carlos Jorge Appel é professor de literatura , crítico literário e Diretor da Ed. Movimento.

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NOTAS

1. Caldre e Fião. O corsário: romance rio-grandense. Porto Alegre: Movimento: IEL; Brasília: INL, 1979, p. 158-159.

2. Um texto resgatado — Flávio Loureiro Chaves. Prefácio de A divina pastora, Porto Alegre, 1992, 2ª edição, p. 13.

3. Miguel-Pereira, Lúcia. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). 3ª., ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1985, p. 184.

4. Simões Lopes Neto. UFRGS / IEL, Porto Alegre, 2ª edição revista, 2001.

1. Caldre e Fião. O corsário: romance rio-grandense. Porto Alegre: Movimento: IEL; Brasília: INL, 1979, p. 158-159.

5. Meyer, Augusto: Guia do folclore gaúcho. 2ª edição. Rio de Janeiro: Presença, 1975, p.200.

6. Flávio Loureiro Chaves. Simões Lopes Neto. Primeira edição em 1982 e segunda edição pelo Instituto Estadual do Livro / UFRGS, em 2001.

7. Léa Masina. Alcides Maya — um sátiro na terra do currupira. IEL/Unisinos, Porto Alegre, 1998.

8. Alcides Maya. Machado de Assis — algumas notas sobre o humour. Movimento, terceira edição revista. Porto Alegre, 2007.

9. Cyro Martins 90 anos. Maria Helena Martins (org). IEL/CORAG, Porto Alegre, 1999.