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CORPOS E/EM CONFLITO | Imprimir |  E-mail

- performances narrativas da fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai

Falemos de fronteiras.
Fronteiras disciplinares, teatro, antropologia. Fronteiras geopolíticas, Argentina, Brasil, Uruguai. Fronteiras narrativas, lobisomens, bruxas, "luz mala", enterros de dinheiro. Fronteiras corporais, mulheres, homens, jovens, idosos... contadores de histórias. São estas fronteiras e os sujeitos que as integram, criando-as e transcendendo-as, o foco principal deste trabalho, onde pretendo demonstrar como, através de análises feitas a partir de dados etnográficos sobre performances de narradores tradicionais, venho procurando realizar este contato.

Definamos fronteiras.
A noção de fronteira que permeará este trabalho relaciona-se com a de "front", que tomo emprestado de Leenhardt (2001), que o define como local privilegiado de conflitos e tensões. Acompanhada da carga simbólica (bélica) de "front", fronteira torna-se assim um conceito-chave não apenas para pensar a zona em questão mas também o tema das performances narrativas. Num outro sentido, é interessante pensar que a fronteira é também o local de encontro com o outro, encontro que pode revelar uma parte de nossa própria humanidade. De conflito passamos então à comunhão.

Devido à sua formação cultural semelhante e o seu contato freqüente, os habitantes desta região, que engloba uma faixa de terra envolvendo parte dos três países, possuem, em muitos sentidos, uma memória comum . Unidos, por um lado, pelas características geográficas da região - o pampa - e por uma formação histórica e organização social similares, a população da região, por outro lado, esteve muitas vezes lutando em frentes opostas, em conflitos que tiveram como conseqüência o estabelecimento das fronteiras políticas entre os três países.

A noção de conflito utilizada ao longo deste trabalho acompanha a perspectiva de Briggs (1996: 13), para quem este não é simplesmente uma divergência dos processos sociais normais, mas, ao contrário, envolve formas complexas que participam na própria constituição da vida social. No Pampa, pensados em uma escala mais abrangente, os antigos conflitos armados, que envolveram episódios dramáticos, podem ser vistos atualmente substituídos por conflitos econômicos, especialmente travados por instâncias ligadas ao poder político-econômico dos três países. Mas numa perspectiva mais local, os conflitos tomam uma outra dimensão, talvez muito mais significativa na vida social da região, deixando de opor países e suas economias para oporem patrões e empregados, trabalhadores urbanos e rurais, jovens e idosos, homens e mulheres, tradição e modernidade, humanos e animais, natureza e sobrenatureza... Ou seja, a identidade, entre os pequenos grupos sociais, intrafronteiriços, encontra-se também, e sobretudo, na própria convivência, manipulação, interpretação e "ficcionalização" (Palleiro, 1992) de suas experiências situadas de conflito.

A questão da identidade é abordada aqui através de uma expressão simbólica comum à toda a região, os "causos" ou "cuentos" em performance, e mais especificamente através dos corpos e vozes dos sujeitos que os transmitem, pois da mesma forma que contadores de histórias brasileiros (gaúchos), cuenteros e pajadores argentinos e uruguaios (gauchos) também representam um importante papel como catalizadores, transmissores e recriadores desta memória e desta relação identitária comum. A identidade aparece, então, também relacionada ao papel desempenhado pelo corpo, estabelecido como o lugar próprio da expressão da personalidade social e da individualidade (Rodrigues, 1975).

Para compreender estas questões na etnografia realizada, primeiramente busco identificar de que maneira o intercâmbio cultural e social característico desta região de fronteira se manifesta no corpo e na vocalização dos contadores: sua movimentação está centralizada no tronco, da cintura para cima, sendo que eles em geral permanecem sentados ou de cócoras, enfatizando o gestual com mãos e braços e as expressões faciais. Ao contrário de regiões que sofreram influência mais direta das culturas negras, onde há grande movimentação também de quadris e pernas e as narrativas são contadas de pé (Mato, 1992), aqui possivelmente foram as culturas indígenas e as culturas européias, especialmente de Portugal e Espanha, que deixaram suas marcas mais profundas. Ao invés de se colocarem numa postura verticalizada, posicionando-se, em relação aos seus ouvintes, de maneira "cenicamente" privilegiada, os contadores e contadoras com os quais tive contato não se levantam para contar seus causos e, se estão de pé, a indicação de que irão começar a narrativa é dada mesmo pelo agachar-se ou sentar-se em silêncio. A diferença em relação aos ouvintes, neste caso, é estabelecida não pelo posicionamento no espaço, mas pela utilização do tempo, através da configuração da tensão entre o uso da palavra e os longos silêncios e pausas que vão marcando as narrativas desde o seu início.

Já o conflito entre as línguas originárias, português e espanhol, se manifesta no uso de expressões híbridas, no bilingüismo e mesmo utilização de um idioma fronteiriço, o "portunhol".

Verificando a formação do corpo dos contadores no seu trabalho cotidiano encontra-se expressa uma forma de conflito entre cultura e natureza: na lida campeira, tratando diretamente com os animais (principalmente gado e cavalos), os homens e mulheres da região, pela necessidade de imposição e manifestação de força frente a estes, desenvolvem uma considerável agilidade e fazem uso freqüente de onomatopéias e de fortes sons sem articulação que, de maneira visível (e audível), vão estar presentes nas narrativas contadas no final do dia. Esta relação entre corporalidade e meio também pode ser constatada através da observação de uma constante horizontalidade dos gestos, que identifica uma forte influência da paisagem da região, extremamente plana, na expressão gestual utilizada pelos contadores. Também em termos de sua expressão vocal, o silêncio do pampa é substancializado nos longos intervalos e na cadência habitualmente lenta das narrativas.

Há uma atitude corporal que parece retomar o conflito em relação à estrutura hierárquica das estâncias, que é uma notável projeção do peito (Marocco, 1996), especialmente utilizada pelos homens da região, como que denotando uma postura de insubordinação. Também no conteúdo das narrativas o conflito entre a ordem instituída e as liberdades individuais ganha relevo, como ocorre com as narrativas sobre contrabando, bastante freqüentes na fronteira, que adquirem aí uma feição heróica, tornando essa forma de comércio totalmente legitimada pela comunidade em questão.

Em termos de conteúdo, ou seja, dos "eventos narrados", a oposição entre natureza e sobrenatureza também tem especial participação nestas performances, onde são enfatizados encontros, temores e expectativas em relação à personagens como o lobisomem, a bruxa, o gaúcho sem cabeça ou a "luz mala".

Um último viés de análise pode considerar ainda a constituição da corporalidade dos contadores da região a partir da uma experiência histórica marcante na região, a das guerras. A memória dos conflitos armados, seja oriunda de uma vivência direta, seja motivada pelas próprias narrativas, opõe-se ao esquecimento, gerando um tipo de manifestação corporal bastante característica, demonstrada através de uma forte economia de movimentos, da grande precisão gestual e de uma "postura guerreira", que simula gestos de ataque e defesa durante a performance narrativa e transpõe o desafio para o nível da oralidade, como no caso da trova, do trote, da mentira, etc. Estas reflexões, que vem sendo desenvolvidas desde minha pesquisa de mestrado (Hartmann, 2000), pretendem potencializar o tema 'fronteira', estendendo o conceito no sentido de torná-lo uma alternativa para a compreensão de manifestações culturais expressivas.

Luciana Hartmann
é graduada em Artes Cênicas (UFRGS) e doutoranda em Antropologia na UFSC