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Calendário Tautológico | Imprimir |  E-mail

Ela esperava a morte lendo o Correio do Povo. O ranger da cadeira de balanço era a trilha sonora que acompanhava a voz do locutor da Guaíba FM. Aquele apartamento no centro da capital tornara-se um bunker de passado. Ela percebia que o tempo passava lá fora, mas preferia ignorar. Dentro, não. Se o cheiro do capim seco não entrava pela sala como na infância, pelo menos tudo estava no mesmo lugar dos tempos do magistério no Colégio de Aplicação. Preferia mesmo que os netos tivessem desistido de visitá-la. Pelo menos, nada sairia do lugar.

Cada nascer do sol era o mesmo, o calendário marcava um último dia que nunca chegava. Tautológico. Achava a palavra bonita, desde que lera em algum lugar qualquer. Esquecera onde. Nas conversas, a samambaia repetia o monólogo silencioso dos dias anteriores. A planta atraia sombra. Mal dava para ver as fotos em cima da prateleira. Nem importa. Filhos, netos, sobrinhos. Todos estão vivos. Nalgum lugar, mas vivos. E os outros tempos ninguém se importou em retratar. Nenhuma foto do pai mateando. Nem do cachorro da fazenda. Nem do baile na igreja. Foi lá que conheceu o marido. Sempre co'lenço vermelho no pescoço, andava ele. No início, tudo uma maravilha. Eram os primeiros anos. Só que foi tudo piorando, piorando. Tinha o governo, e o patrão dizia que a coisa tava ficando ruça. Começou a fazer docinhos, como via nas revistas e no jornal que chegava só lá de quando em vez. Um dia, descobriu que morava numas bibocas. Tinha a capital e tinha as bibocas, falou a vizinha. A vizinha foi-se pra capital. Ela ficou, além do mais achava biboca um nome tão simpático.

E teve o dia em que pensou que o marido estava mentindo. Pensou assim, ligeirinho. Mas pensou, e foi se confessar com o padre. Ainda hoje, acha que tinha razão. O homem tinha posto roupa de ir pra cidade. Dizia que estava pelas redondezas, mas não explicou o porquê do paletó azul-marinho de ir pra cidade. Devia ser problema com a safra, ele envergonhado por causa do dinheiro. Ela nunca entendeu das finanças e deixou por isso mesmo. Mas teve aquele outro dia, pior ainda. Em que ele chegou e disse bem assim: que tinham que ir para Porto Alegre. Que no campo não dava mais, e que o seu fulano, o sobrinho da dona coisa, tinha ido e era um caminhoneiro, vai que ele também seria um caminhoneiro promissor. E donde é que já se viu caminhoneiro promissor, e ela nem falou lá muito alto, só resmungou mesmo, e ele fingiu que não ouviu. Na hora de ir embora, só pôs a imagem de Deus debaixo do braço e subiu-se no ônibus com vontade de chorar (mas bem contida que é pra não dar vexame naquelas bandas, justo ela que sempre fora tão correta e bem quista não podia macular-se nos últimos instantes). Foi Deus quem deu forças e fez com que secassem as lágrimas. Ela sabia, afinal, que a culpa por aquela desgraça não era do Senhor, que era dos homens. Deus não tinha nada a ver co'aquilo.

Toda noite, no ritual do deitar-se, via a mesma imagem de Deus pregada na parede em cima da cama. Como se zelasse por ela. Tinha os cabelos brancos, os olhos amendoados, dedos na máquina de escrever criando o mundo cada vez que Seus dedos apertavam uma tecla. Uma noite, percebeu que ele não estava mais lá. Não havia mais Deus. E ela também não estava mais lá.

(Especial para a Revista CELPCYRO)


Ao receber o convite para contribuir com a Revista CELPCYRO, fui reler as obras de Cyro Martins. E me deparei com algo que vai bem além da leitura usual do 'gaúcho a pé': uma linguagem forte, que faz a narrativa fluir mesmo quando não há ação. Como em Clarice Lispector. Pareceu-me, então, que seria interessante trabalhar com uma personagem que reunisse todas aquelas mulheres maravilhosas criadas pelo Cyro. Queria escrever sobre todas, ou pelo menos todas que conheci nos livros. Optei por colocá-las todas em um vórtex e tirar uma grande mulher arquetipíca. Mas deixando em aberto para o leitor enxergar, ali, sua mulher cyromartiniana favorita.

Eduardo Nasi