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Antes da Mesa-redonda | Imprimir |  E-mail

Roberto Bittencourt Martins - médico psicanalista e escritor


Diante da janela aberta, enquanto aguarda o cliente, o doutor tenta articular sua participação na Mesa-Redonda do Simpósio; o tempo é escasso, a reunião será hoje à noite. Sem muita inspiração, repete em voz alta seu tema:...saúde mental... formação médica... Imagina a platéia em que predominarão certamente os rostos jovens. O assunto lhe parece vasto em demasia, como se tivesse de descrever em detalhes, nuvem por nuvem, a paisagem fugidia do céu à sua frente. Reflete que a vida escorre, breve e rápida, que sua experiência pode ser enganosa e que qualquer conclusão é difícil. Seu olhar vaga pelo azul e um amontoado de memórias começa a despontar em sua mente. Apanha o livro que está sobre a mesa -"Rumos do Humanismo Médico Contemporâneo" -, folheia suas páginas e se detém no trecho em que Cyro afirma: "Toda doença desencadeia ansiedade, em qualquer pessoa. A ansiedade, por sua vez, aciona os mecanismos de defesa que sustentam a estrutura da personalidade." Continua a ler e acompanha o raciocínio de Cyro sobre a defesa maníaca que, negando os sentimentos de depressão e ansiedade, gera uma tentativa de controle onipotente da situação de desamparo. O doutor suspende a leitura e pensa nesse desamparo do ser humano, presente desde os primeiros tempos do recém-nascido: um bebê chorando e assim expressando o apelo para que alguém venha aliviá-lo de seus múltiplos desconfortos - fome, frio, dor, solidão e toda a estranheza de um mundo novo... Reflete que, embora Cyro estivesse falando a respeito do paciente crônico, poderia referir-se da mesma forma ao desamparo do médico e, principalmente, daquele em formação. Afinal, ao escolher a profissão médica, ele se transforma, sem que o perceba, no mais crônico de todos os pacientes: será obrigado a carregar, pela vida inteira, a identificação com alguém que está sofrendo e necessita de seu auxílio para recuperar a saúde ou manter-se vivo e lúcido.

O doutor olha o relógio e constata, com certa impaciência, a impontualidade de seu cliente. Lança o olhar para o céu lá fora, onde as nuvens se entrelaçam, e novamente seu pensamento se acumula de recordações, agora menos vagas: paredes de hospitais, ambulatórios, clínicas, consultórios, sempre alguém à sua espera aguardando atendimento... Gente, muita gente, anos a fio... Rememora: já se passaram quase trinta e sete anos desde que, em coro com sua turma, repetiu, no teatro cheio, o juramento de Hipócrates. Estavam todos um pouco altos, com a garrafa sendo passada, oculta sob as becas, de mão em mão... Nessa lembrança, o doutor percebe que, na verdade, seus pensamentos estão sendo guiados pelo cliente que aguarda: um sexto-anista de medicina. Depois, volta a enlaçar sua memória com o tema da Mesa-Redonda e reafirma para si próprio que sua formação médica havia realmente começado após os anos teóricos, em seu terceiro ano de curso, quando se iniciara seu atendimento aos pacientes. Revê a si mesmo, jovem como seu cliente, atendendo à primeira paciente que lhe fora designada. Ainda lembrava sua fisionomia, seu nome e a doença cardíaca de que ela padecia... Talvez como reflexo do impacto vivido naqueles tempos, havia então escrito um conto que tivera a boa sorte de ser premiado num concurso estudantil e lhe rendera alguns cruzeiros. Ainda pode recordá-lo: narrava a visita matinal que um estudante, interno da Enfermaria, fazia a seus pacientes. Lá encontrava , num dos leitos, um adolescente curioso e cheio de esperanças num futuro que a doença lhe negava. Depois, em outro leito, o interno fazia o exame de um homem que, com os sintomas já controlados , pedia para não ter alta: uma vez fora do hospital, não poderia tomar a medicação que não tinha como comprar. E chegava, por fim, ao terceiro leito, onde , na eterna luta da vida contra a morte, um velho entrava em agonia. O interno vacilava, pensava na fragilidade dos tecidos de que somos feitos, ia depois até a janela, respirava fundo e voltava à ausculta.

Era isso. O doutor resume a lembrança: nada além do cotidiano médico que todos conhecem bem. Sabe também que, por meio da ficção, tentara elaborar esse choque inevitável , consequente ao contato do médico em formação com a doença, a dor, a miséria e a finitude do ser humano... Sempre o mesmo impacto em todas as gerações, sempre despertando as ansiedades que teriam de ser elaboradas vagarosa e firmemente. Até a chegada do momento em que a depressão resultante pudesse ser tolerada, sem que fosse necessário negá-la nem buscar refúgio na onipotência... O doutor faz a si mesmo agora uma outra pergunta: ele próprio terá conseguido ultrapassar a proteção dessas barreiras falsas, em que o mundo inteiro pode ser concebido dentro de uma divisão entre "os doentes" e "o médico"? Com alguma satisfação, imagina que talvez os anos já lhe tenham trazido, além da calvície e as têmporas brancas, a capacidade de devolver sua vida ao acaso e de aceitar seu mistério. Afinal, doença e saúde , como dizia Felix Deutsch, não são essencialmente diferentes; a saúde é a base da doença e, durante a doença, os elementos da saúde podem ser reconhecidos... Anota mentalmente essa noção, talvez sirva para ser dita na Mesa-Redonda... Retoma suas lembranças, agora as de seu primeiro paciente na Enfermaria de Psiquiatria, em seu quinto ano: um agricultor de origem finlandesa, vindo de Penedo, atormentado por delírios e alucinações de conteúdo místico. Mais memórias: os domingos de plantão, em que, tendo as chaves das enfermarias em seu bolso, era às vezes tomado pela incômoda sensação de estar representando o papel do Dr. Simão Bacamarte, o Alienista, dono e senhor dos portões e muralhas que isolavam a loucura da sanidade mental. Mais plantões, outros hospitais... Num Pronto Socorro Psiquiátrico, o eterno dilema: internar o paciente ou enviá-lo ao Ambulatório? O risco de suicídio ou de algum outro crime será concreto ou fantasioso? E como encontrar a verdade quando o doente e seus familiares divergem em suas versões, inundando o atendimento com um clima pirandelliano de "Assim é, se lhe parece"? Dez anos mais tarde, noutro hospital, supervisionando estagiários e buscando elucidar as ansiedades dos colegas iniciantes em seus primeiros embates com os transtornos psiquiátricos... Revê o início de um Grupo Operativo de estagiários que coordenou, e recorda sua decepção ao encontrar nos participantes apenas queixas quanto ao horário da reunião. Hora alguma atendia ao desejo de todos e ele sentia que era reduzido a mero guardião de um ponto burocrático. Então, no terceiro ou quarto encontro do grupo, um dos alunos havia trazido - enfim - um caso que atendera. O paciente era um rapaz oligofrênico , trazido pela família desde um município vizinho. Vindos de longe, os familiares aguardavam algum remédio que mudasse rapidamente a condição do jovem; depois, decepcionados com o tratamento ambulatorial prescrito pelo estagiário, tinham se insurgido e, revoltados, haviam procurado a Direção para queixar-se. Pela primeira vez, o grupo parecia aceder ao debate de um caso e, na discussão, como Coordenador, ele conseguira vislumbrar a intensidade da decepção que emperrara o andamento do grupo. Decepção dele próprio com os estagiários; decepção dos alunos quanto aos tratamentos psiquiátricos demorados e a seus resultados e, ainda, em relação à ingratidão dos pacientes; decepção de uma família, iludida pelo falso sonho de curas fantásticas... A desilusão havia sido geral , mas , vinda à tona, pudera ser apontada, comentada e trabalhada até ser cicatrizada lá pelo final do curso.

O doutor pensa agora nas feridas narcísicas inevitáveis na atividade médica. Reflete que, se não forem assinaladas e bem esclarecidas, terminarão por produzir no médico uma crosta endurecida de insensibilidade e frieza: o paciente poderá ser "coisificado" pelo médico que o verá como inimigo de sua sabedoria especializada e de sua estabilidade psicológica. Repensa depois o episódio que lembrou do grupo de estagiários; se não encontrar nada melhor, talvez possa relatá-lo na Mesa-Redonda. Olha em seguida o relógio, constata que o tempo passou e que seu paciente não veio, desprezando a hora marcada. Vem-lhe aquele sentimento, conhecido e ruim, de estar sempre sabendo menos do que deveria. Lamenta o tempo que perdeu, às voltas com suas lembranças; poderia tê-lo aproveitado em algum estudo do tema da noite de hoje. Seu pensamento retorna ao cliente que faltou e imagina que o rapaz tenha preferido passar aquela hora em alguma comemoração, talvez em volta de alguma mesa, bebendo um chope com os companheiros. Ao pensar nessa possibilidade, o doutor se refaz de sua contrariedade pela espera em vão. Mais tolerante, recorda o ditado grego: "uma vida sem festejos é como um longo caminho sem estalagens"... Quem a dissera, Demócrito ou Heráclito?

O velho doutor contempla novamente o céu, que o fim do dia está acinzentando. Fecha a janela e, enquanto deixa o consultório, abandona também a preocupação sobre o que irá dizer na Mesa-Redonda de hoje à noite. Paciência, diz a si mesmo, falará o que lhe ocorrer no momento; poderá ser pouco, mas será o que sabe.

Rio de Janeiro, julho de 1999

Roberto Bittencourt Martins


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