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SAÚDE MENTAL NA FORMAÇÃO DO MÉDICO | Imprimir |  E-mail

Conferência inaugural do Colóquio Saúde Mental na Formação Médica -

Sinto-me sob o impacto de 3 emoções: 1) a honra de ter sido convidado para fazer a palestra inaugural de um evento tão significativo como esse, que tem tudo para prosseguir tendo uma continuidade regular, de modo a vir a fazer parte do calendario anual de importantes encontros científicos em relação à formação médica. 2) o privilégio de abordar uma temática que sempre ocupou uma larga parcela do meu tempo cronológico e afetivo no que toca a desenvolver atividades que contribuam, especialmente para as gerações de jovens, à construção de uma identidade médica , qual seja, a de promover uma constante integração do corpo com a mente, do indivíduo com a sociedade, do órgão doente com o indivíduo como uma totalidade. 3) o sentimento de um profundo reconhecimento em relação à figura ímpar e extraordinária de Cyro Martins, um incansável batalhador pelos caminhos do humanismo científico, mestre de todos nós e meu amigo particular, a quem muito devo, como um modelo que ele me foi, de profissional e de homem.

Para a abordagem do tema que nos reúne hoje- Saúde mental na formação do médico-, convém conceituarmos separadamente os termos saúde mental e formação médica. Assim, como sabemos todos, a concepção de "saúde", segundo a OMS, consiste num "estado de um completo bem-estar físico, psíquico e social", e creio que todos hão de concordar que essa plenitude de bem-estar é utópica, sendo que, pelo menos em nosso país, a condição da aquisição ao direito de uma digna condição de cidadania social está muito longe, mas muito longe mesmo da realidade brasileira onde a maior parte da população vive em condições sub-humanas e mal consegue sobreviver.

Esse tom pessimista com que estou enfatizando a nossa triste realidade sócio-econômica-assistencial, de forma alguma deve significar que a classe médica deva permanecer amordaçada, com as mãos amarradas e, muito menos, que os médicos se resignem, conformem e se acomodem com a situação vigente. Pelo contrário, se não temos como influir diretamente numa profunda e efetiva modificação na profilaxia e atendimento médico-psicológico, não é menos verdade que muito podemos fazer, quer no que tange aos cuidados de saúde primária, ou seja, no campo da profilaxia com medidas preventivas para indivíduos, famílias e comunidades; quer na saúde secundária, isto é, com procedimentos curativos propriamente ditos; assim como também podemos atuar no campo da saúde terciária, ou seja, o da reabilitação de pessoas cronicamente enfermas.

Em todas essas circunstâncias um passo fundamental consiste numa adequada preparação do médico no sentido de um conhecimento e manejo dos aspectos psicológicos que cercam a todo e qualquer ato médico, além, obviamente daqueles que se referem diretamente à área da saúde mental, ou ao campo das doenças manifestamente psicossomáticas.

Destarte, em sintonia com os ensinamentos pioneiros de Cyro Martins, tal como eles aparecem em um livro específico seu- "Perspectivas da relação médico-paciente"-, escrito juntamente com colaboradores por ele convidados, além de diversos artigos publicados sobre essa temática, o que aqui estamos destacando é a extraordinária importância da relação médico-paciente. É útil sempre levarmos em conta o fato de que o vocábulo "médico" deve ser entendido na atualidade, em sua dimensão mais ampla, que abrange toda uma equipe de atendimento, a qual pode ser composta não unicamente de uma multiplicidade de médicos, como também de para-médicos, enquanto o termo "paciente" igualmente deve adquirir um significado abrangente, que inclui o paciente propriamente dito, com os respectivos familiares e demais pessoas envolvidas.

Todos concordamos com a afirmativa de que uma formação médica adequada implica necessariamente uma construção alicerçada no clássico tripé fundamental, qual seja: 1) um sólido respaldo de conhecimentos teórico-técnicos, os quais são advindos dos estudos curriculares, grupos de estudo e pesquisa e, principalmente, de uma continuada dedicação à leitura com permanentes e renovados estudos; 2) a aquisição de habilidades, as quais são conquistadas mercê de um continuado treinamento na prática das diversas especialidades da atividade médica, desde que essas atividades em estágios curriculares sejam acompanhadas de perto por um consistente supervisionamento por parte de colegas mais experimentados; 3) o desenvolvimento de atitudes autênticas em relação a qualquer ato médico. Esse último aspecto é o que cabe ser aqui destacado, levando em conta que além de sólidos conhecimentos e de habilidades competentes, a personalidade real do médico, conjugada com as duas anteriores, influi decisivamente no êxito ou eventual fracasso dos objetivos propostos a serem alcançados.

Atitudes do médico. Embora respeitando o fato de que cada médico tenha uma personalidade com características próprias e um estilo singular de ser e trabalhar, não é menos verdade que uma série de atributos mínimos devem necessariamente participar da construção da identidade médica particular de cada um deles. Vale a pena enumerar algumas dessas condições necessárias mínimas para um adequado exercício da ciência e arte da medicina:

Aquisição de uma sólida identidade médica: a identidade de cada pessoa funciona como se fora uma "carteira de identidade", isto é, a nomeia, dá as suas características principais e a acompanha, durante toda a vida, com sucessivas transformações, porém sem nunca perder a sua essencialidade. Assim o médico, no exercício de sua atividade, embora com algumas variações inevitáveis, deverá manter-se basicamente o mesmo, quer quando atende a sua clínica privada ou um paciente do SUS, numa instituição pública ou particular, num hospital ou numa vila comunitária, e assim por diante, sem nunca perder a necessária hierarquia circunstancial de seu papel de médico, com uma clara delimitação e preservação do seu lugar, posição, função e reconhecimeto dos recíprocos limites e limitações.

Capacidade de empatia. A etimologia dessa palavra é composta das raízes gregas em (quer dizer: dentro de) e pathos (sofrimento), portanto alude à capacidade de o médico se colocar no lugar do paciente, ou seja, entrar dentro dele para, junto, poder sentir o seu sofrimento de uma forma mais completa e poder envolver-se, afetivamente, sem correr o risco de ficar envolvido, cientificamente. Entendo que a chave-mestra que propicia o êxito desse aspecto consiste no atributo de o médico gostar, autênticamente das pessoas que ele atende e do exercício da medicina que ele pratica.

Capacidade de ser continente. Essa palavra vem do verbo latino contenere que quer dizer "conter", ou seja, o médico deve ter condições de acolher as angústias e necessidades do paciente e respectivos familiares, contê-las dentro de si um tempo suficiente para entendê-las e não ficar contaminado pela angústia que o levaria a uma pressa de medicar sem ainda ter tido uma convicção daquilo que está fazendo e prescrevendo.

Capacidade de ter uma comunicação adequada. Esse aspecto relativo à comunicação do médico com os seus pacientes, familiares e colegas, é bastante importante e refere a dois aspectos: o de como ele transmite as suas mensagens verbais, e o de como ele escuta as mensagens dos outros. Não raramente um médico não consegue enfrentar a angústia de certas verdades penosas (por exemplo, comunicar a existência de uma doença de prognóstico grave), e consequentemente ele não conseguirá ser natural, o que acaba criando um clima algo falso e sobretudo de uma inconfiabilidade e insegurança pairando no ar. O estilo de comunicação obviamente varia de um médico para outro, conforme a personalidade básica de cada um, no entanto, seja qual for o estilo de comunicação, o que não pode variar é a obediência aos fundamentos básicos da competência e da ética. Também acontece freqüentemente o fato de que o médico não sabe escutar a seus pacientes (é importante frisar que "ouvir" não é o mesmo que "escutar"). Nessa circunstância o paciente costuma sentir-se desamparado porque incompreendido naquilo que ele queria transmitir relativamente ao seu estado de medo, angústia, sua forma de colaborar ou boicotar o tratamento prescrito, etc. Também é importante que o médico saiba distinguir quando um paciente (ou ele próprio) pode estar falando muito, porém dizendo pouco, ou mesmo quando, falando pouco, pode-se estar dizendo muito, e para tanto é importante estarmos atentos para as comunicações não verbais, que se manifestam por gestos, atitudes, atuações, somatizações, nunca esquecendo que, de muitas e distintas maneiras, o corpo fala!, sendo que continua válida aquela antiga máxima de que emoções que não saem pelas lágrimas, choram pelos órgãos.

Capacidade para ver, enxergar. Estou empregando estes termos para frisar o fato de que "olhar" é diferente de "ver", de modo que não basta olhar para o paciente, é preciso enxergar, especialmente aquilo que nem sempre é visível aos órgãos dos sentidos. Assim, continua cada vez mais válida aquela clássica máxima de que "muito mais do que examinar o órgão doente, o médico deve examinar o ser humano que está à sua frente", com todas as demais angústias existenciais que, de uma forma ou outra, acompanham a nós todos, quer essas angústias sejam de natureza orgânica, econômica, afetiva, psicológica, existencial, familiar, etc. Uma síntese dessa distinção entre ‘olhar’ e ‘ver’ está contida nessa singela e profunda frase do "pequeno príncipe": o essencial é invisível aos olhos.

Uma visão sistêmica da medicina. O termo "sistema" alude ao fato de que o todo é muito distinto e maior do que a soma das partes, por mais importantes que cada uma dessas partes isoladamente possa representar. Assim, como antes foi destacado, mais do que a soma dos tecidos e órgãos doentes, todo sujeito que está necessitado de cuidados médicos, carrega como pano de fundo uma singular realidade bio-psico-social, e está inserido numa sociedade que lhe impõe distintas formas de violência, não somente aquela da quotidiana violência urbana sob a forma de assaltos, atentados, atropelamentos, como também a violência através da injustiça social, das humilhações impostas às classes desfavorecidas, a corrupção dos valores morais, a fome, miséria e, principalmente, um total desamparo quanto aos imprescindíveis cuidados médicos... Este aspecto da necessidade de o médico desenvolver uma ‘visão sistêmica’ cresce de importância na medida em que o mundo moderno vem sofrendo sucessivas, aceleradas e vertiginosas transformações, não unicamente em todas as ciências, quer as exatas, quer as humanísticas, como também são igualmente profundas as mudanças nos valores culturais e espirituais. Para ficarmos num único exemplo, basta vermos o quanto a formação e estruturação da família dos tempos atuais difere das famílias antigas, tal como atestam os cada vez mais freqüentes casamentos, seguidos de descasamentos e recasamentos com a mesclagem de filhos, a mudança dos papéis do homem e, principalmente, o da mulher, a emancipação mais prematura dos filhos, a aceitação em muitos países desenvolvidos no que tange à união estável entre homossexuais, inclusive com a adoção de filhos, etc, etc.

Mais estritamente no campo da medicina, além dos acelerados e ininterruptos avanços teórico-técnico-práticos, com profundos avanços farmacológicos, tecnológicos e campos de pesquisas, também estamos entrando no novo milênio com crescentes problemas referentes às áreas da bio-ética e o da psico-ética, resultantes dos aspectos ligados à progressiva entrega dos cuidados médicos a empresas seguradoras e cooperativas de saúde; ao acelaradamente crescente mundo da informática com o acesso rápido pela Internet, as consultas através de E-mails e a entronização do realismo virtual; a influência da midiologia influindo nos corações e mentes, nos hábitos corporais e na saúde orgânica e também na divulgação de um pós-modernismo, no qual as imagens começam a preponderar sobre as palavras e o pensamento; a prática de transplantes de órgãos, a crescente engenharia genética e o projeto do "Genoma humano" que, ao custo estimado em 3 bilhões de dólares, deverá estar concluído em 2007, com as inestimáveis contribuições e repercussões na medicina, especialmente no tocante ao importantíssimo e ainda pouco estudado campo da psico-imunologia; a inseminação artificial e a "barriga de aluguel"; a reprodução de clones, e assim por diante.

O médico como educador. Creio firmemente no fato de que o papel do médico deve ir bastante além de um dedicado e competente atendimento médico, de modo que ele deve estar ciente de, no mímino, mais dois aspectos: o primeiro consiste na probabilidade de, mercê do seu jeito de ser como pessoa real, ele possa exercer uma importante função psicoterápica, o que não deve ser confundido com a prática de uma psicoterapia formal. O segundo aspecto se refere ao fato de que o médico pode, e deve, desempenhar uma função de educador para pacientes individualizados, para famílias e comunidades, no que toca a hábitos de higiene orgânica e psicológica principalmente quanto à uma finalidade profilática, da mesma forma quanto a um conhecimento de cada pessoa em relação ao seu próprio corpo, na saúde e na doença, a forma de assumir e colaborar com o médico na administração dos problemas de saúde da família, etc, etc.

Algumas sugestões

Tendo em vista a natural limitação do espaço, vou me restringir a unicamente enumerar, de 1 a 10, num estilo telegráfico, algumas sugestões que me ocorrem, que possam contribuir para o desenvolvimento da saúde mental na formação do médico:

  • criar no estudante de medicina, desde o início de sua formação, uma mentalidade voltada à importância e ao exercício prático da saúde mental, dentro de uma visão sistêmica;

  • para tanto, torna-se necessário que as faculdades formadoras de médicos ampliem de forma significativa o espaço de ensino-aprendizagem para a saúde, e não unicamente para as doenças, o que implica o conhecimento do desenvolvimento emocional primitivo desde a condição do bebê, com a respectiva e contínua interação com a família; logo, o estudante deve possuir um suficiente conhecimento da dinâmica familiar, em seus múltiplos aspectos;

  • é imprescindível, portanto, um estágio de treinamento em centros comunitários, o que vai possibilitar ao médico em formação a integração do indivíduo com a comunidade, da saúde com a doença, dos problemas particulares com os coletivos e os de âmbito sócio-políticos, etc. Uma advertência, no entanto: a implantação desse tipo de treinamento estará fadado ao fracasso na hipótese que os professores encarregados de um supervisionamento do enfoque de saúde comunitária não estejam adequadamente preparados para essa tarefa e, pior que tudo, que não acreditem ou não gostem dela;

  • um treinamento embasado na experiência de trabalho com equipes multidisciplinares, congregando médicos e para-médicos;

  • o incremento de serviços de consultoria, de tal sorte que promova uma integração e intercâmbio de experiências entre diversas especialidades médicas, notadamente com os técnicos da área que entende e cuida do psiquismo em suas múltiplas e polimorfas facetas;

  • esse aspecto representa um dos mais importantes fatores que contribuem para o desenvolvimento de um - imprescindível - conhecimento da assim chamada medicina psicossomática;

  • a criação de programas de educação médica continuada;

  • na formação do médico em geral, deveria haver um espaço para o conhecimento e treinamento de dinâmica de grupo;

  • uma das formas que pode ajudar a atender o item anterior relativo à dinâmica grupal, além de propiciar uma frutífera troca de experiências médicas, notadamente no que tange aos atuais problemas de natureza bio e psico-éticas, e aos inevitáveis aspectos emocionais que cercam a todo relacionamento médico-paciente, consiste na utilização de grupos de reflexão;

  • finalmente, um bom médico deve estar voltado para aquilo que Cyro Martins denominava humanismo científico, o qual, no dizer do mestre, consistia num saber intermediário entre a medicina e as ciências do espírito.

Em síntese, se nós, trabalhadores da saúde física e da alma humana, tivermos olhos para enxergar, ouvidos para escutar, palavras para dizer, sentimentos para sentir e uma mente não saturada por preconceitos, de modo a propiciar uma tolerância a conhecimentos provindos de outras fontes para um aprendizado daquilo que não nos é familiar, que difere de nossos valores habituais e ofende a nossa ignorância, ficaremos estupefactos diante da riqueza que está ao nosso alcance, que ainda não estamos conseguindo usufruir e que, possivelmente se constitui como o maior desafio que o próximo milênio representa.

Tenho uma plena convicção de que essas palavras mereceriam a assinatura do querido Cyro, patrono e inspirador desse nosso encontro, e a quem, publicamente, rendo o meu preito de saudade e gratidão.

David Zimerman
Médico psiquiatra. Psicanalista da SPPA


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