Relações e tenções nos países do Mercosul - Ligia Chiapipini | | Imprimir | |
Ligia Chiappini Este texto é o roteiro esquemático de uma mini-conferência, apresentada no II Workshop do projeto Fronteiras Culturais e Cultura Fronteiriça na Comarca Pampeana: Obras exemplares, no âmbito do programa Probral (CAPES-DAAD), em novembro de 2004, na Universidade de Bremen. Trata-se de uma pequena contribuição ao diálogo com a Profa. Dra. Sabine Schlickers, que se iniciou desde a formulação deste projeto e vem se aprofundando a partir do primeiro Workshop, organizado no Instituto Latinoamericano da Universidade Livre de Berlim, em julho de 2004, quando ela apresentou o texto Fronteiras culturais e cultura fronteiriça no Rio da Prata: La literatura gauchesca argentina y uruguaya en los siglos XIX y XX, un esbozo. Este meu texto pretende ser uma espécie de contraponto e complemento brasileiro ao texto de Sabine Schlickers, na forma de algumas reflexões sobre a gauchesca riograndense e no quadro das tensões da região sul da América do Sul. Tensões essas que são políticas, econômicas e identitárias. Para isso sigo o esquema abaixo: 1. Brasil e Argentina: ponte para a integração da América do Sul ou incentivo a sua desagregação? Os estudiosos dos blocos econômicos e das relações de poder nas fronteiras acusam a existência de uma tensão permanente entre integração e separação, que muitas vezes se vincula ao oportunismo político-econômico, com utilização ambígüa dos estados nacionais. Essa tensão se pode observar no caso do Mercosul, em que o oportunismo político, por sua vez, historicamente, vincula-se ao dos países dominantes, tais como Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha .Economistas, sociólogos e historiadores têm escrito muito sobre o Mercosul. Em 2003 surgiu um volumoso e interessante livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira (Bandeira, 2003), dedicado ao tema, mas com um enfoque um pouco mais amplo no tempo, no espaço e nos sub-temas com que relaciona o tratado de livre comércio entre Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, que hoje em dia se estende a outros países associados como Peru, Bolívia, Chile e Venezuela. O livro de Bandeira é leitura obrigatória para os jovens diplomatas brasileiros no governo Lula, como forma de sensibiliação para os problemas da América Latina, principalmente da América do Sul. Partindo do final da guerra do Paraguai e chegando até nossos dias, Moniz Bandeira persegue esses intentos de integração econômica e social (o cultural não é tema do livro, mas ele traz interessantes análises e informações para pensar também esse aspecto do problema). Como o título deixa claro, a intenção é estudar os esforços de integração e os conflitos que minam esses esforços na grande região sulamericana. Mas o destaque se dá às relações entre Argentina e Brasil (dois maiores países do Mercosul), como “principal palco dos acontecimientos” que decidem muito do destino de alianças ou rupturas mais amplas com os demais países do Cone Sul e da América do Sul. Descreve-se aí pormenorizadamente uma relação entre Brasil e Argentina, que foi até os anos do século passado (XX) de muita rivalidade, o que se expressou concretamente numa verdadeira corrida armamentista. A essa corrida e às disputas por espaço econômico se opõe todo um trabalho diplomático, sobretudo a partir do final do Império Brasileiro. Com a mediação de diplomatas do porte do Barão do Rio Branco, formula-se uma espécie de antecedente do Mercosul, o ABC (Argentina, Brasil, Chile), como união política defensiva contra o domínio da Inglaterra e dos Estados Unidos que começava a substituir aquela, como principal potência imperial na região. Depois de tentativas meio bem sucedidas e meio malogradas, entre 1930 e 1960 (sobretudo na época de Perón e Getúlio como presidentes dos respectivos países), interrompidas por outro tipo de integração que poderíamos considerar sinistra, feita pelas ditaduras, começou um período que se poderia chamar de auto-conciência da própria fragilidade, a qual deveria sobrepor-se aos ressentimentos e complexos de superioridade de um Brasil grande ou de uma Argentina super civilizada, para resumir brutalmente algo que é muito mais complexo. O papel do Brasil na América Latina, com seu desenvolvimento econômico, apesar das crises, se impôs e as contradições com os Estados Unidos cresceram ao um ponto tal que hoje a resistência à Alca é liderada pelo Brasil, na mesma medida em que se busca remotivar e reforçar a organização do Mercosul, principal concorrente da Alca. A luta que se descreve é, então, de um esforço de integração por parte da Argentina e do Brasil, bem como de tentativas para evitar isso por parte dos Estados Unidos e Inglaterra, sobretudo por meio de pressões diplomáticas e econômicas. Nos anos 80, com a abertura democrática, haverá mais possibilidades para a implantação do Mercosul. A bacia do Prata, de campo de conflito, tornou-se mais campo de integração e as fronteiras de guerra e disputas por poder, tornaram-se fronteiras de paz e de intercâmbio econômico, político e cultural, embora os conflitos volta e meia venham à tona, como ocorreu recentemente, quando do aniversário dos 10 anos da assinatura do tratado de Ouro Preto. O próprio desenvolvimento dos países, em meio a crises ou näo, produziu um ambiente cada vez mais integrado, por cima dos desencontros do passado (1). Nos días atuais, depois da bancarrota da Argentina e da quase bancarrota do Brasil, há uma consciência maior da necessidade do fortalecimiento da integração regional sulamericana contra as ilusórias “relações carnais” com as grandes potências, como queria Menen. Com base nesse histórico, defende-se o Mercosul como a única maneira de lutar contra a Alca na forma como foi proposta, a qual interessa só aos Estados Unidos. Mas para isso, se insiste na necessidade de reforçar a integração cultural junto com a integração política e econômica. Distintos esforços dos círculos intelectuais, sobretudo da parte dos historiadores, foram feitos no passado e se fazem hoje na construção cultural do Mercosul. Para entender esses esforços é preciso levar em conta desde a teoria racista e nacionalista-lusitana do historiador Moysés Vellinho, expressada num célebre texto denominado “O espírito de fronteira e a integração nacional”, que vê o Rio Grande de Sul como uma laboriosa empresa luso-brasileira, para adiantar a fronteira e velar por ela, até estudos mais recentes, que vêem a região como marcada por conflitos que configuraram fronteiras belicosas, transformadas progressivamente em fronteiras pacíficas, sobretudo em razão das conquistas cotidianas de convivência de seus habitantes. Falar do Mercosul para esses estudiosos é também falar da possibilidade de criar fronteiras de paz ao nivel regional em um tempo de novas guerras de fronteira ao nível mundial. Para Gregório Recondo, por exemplo (Recondo, 1997:p.20), a questão é como gerar uma consciência de pertencimento no espaço do Mercosul, ampliando o horizonte das lealdades nacionais. Dessa perspectiva, o Mercosul será realidade plena quando se enraíze na cultura das comunidades nacionais. Trata-se também de criar uma nova filosofia da fronteira, que passa de línha divisória à porta de entrada. Uma filosofia que se coloca contra o economicismo, apontando a omissão da cultura como base do fracasso das tentativas integracionistas da América Latina. Sem integração cultural não haveria integração econômica e política. Contra patologias (nacionalismo fundamentalista, histrionismo patrioteiro) e contra o cosmopolitismo desgastado, que não ajudam nada nessa tarefa nova. Ataca-se ainda a lógica globalizadora, que dilui as identidades nacionais e pretende imprimir um selo de uniformidade superficial a toda a vida do planeta. A essas posições igualmente incompletas e sectárias se oporia uma consciência regional de pertencimento, nossa maneira iberoamericana, que sería nosso modo característico de ser universais.( Recondo, 1997: p. 416). Mas o Mercosul não está livre da tensão entre integração e separação de que tratamos acima. O antropólogo Alejandro Grimson, do Instituto de Desarollo Económico y Social (Argentina) (2) se propõe a estudar concreta e empiricamente os conflitos, mais do que as relações harmônicas das fronteiras do Cone Sul, indo mais além da mescla identitária, das combinatórias fronteiriças e desvelando “las lógicas locales de disputas interfronterizas”. Sua proposta implica “ir a las fronteras para mostrar la contingencia y historicidad del límite” (Grimson, 2000: p. 90), o que implica “no enfatizar exclusivamente su porosidad y sus cruces, sino también las luchas de poder, los estigmas persistentes y las nuevas formas de nacionalismo” (Grimson, 2000: p. 90). Nesse caso também muda ou se amplia a concepção dos agentes fronteiriços. No Cone Sul seriam agentes fronteiriços tanto os jesuítas das reduções quanto os índios guaranis, tanto os bandeirantes quanto os fazendeiros riograndenses, entre outros que, por meio de derrotas ou vitórias contribuíram para a construção das fronteiras políticas na região. A relação já por si mesma problemática entre nação, estado e cultura, torna-se ainda mais problemática se tentamos entender as relações entre a ação estatal e a dos atores sociais nas fronteiras. E isso nos impediria também de nos contentarmos com as desconstruções do Estado, desvinculadas da realidade e da história. “El estado existe y el territorio es una de las primeras condiciones de esa existencia.” (Grimson, 2000: 92). “En esas zonas se desarrollan relaciones interculturales que no plantean necesariamente la “pérdida de identidad” nacional. En muchos casos, por el contrario, esas identificaciones se encuentran exacerbadas, atravesadas por el mandato nacionalista de “hacer patria”. (Grimson, 2000: 94) Ao mesmo tempo não há uma concordância precisa entre estado e nação. As relações entre poder e identidade nas fronteiras, e entre as fronteiras e seus estados respectivos são problemáticas precisamente porque o estado não pode controlar sempre as estruturas políticas que establece em suas extremidades. Condensando espaços socioculturais, as fronteiras separam e unem material e simbolicamente. As fronteiras políticas constituem um terreno sumamente produtivo para pensar as relações de poder no plano sociocultural, já que os interesses, ações e identificações dos atores locais encontram diversas articulações e conflitos com os planos e a penetração do estado nacional. (Grimson,2000: p. 93) Estudos específicos no Cone Sul demonstram que “las fronteras continúan siendo barreras arancelarias, migratorias e identitarias” (Grimson, 2000:96). A política de integração regional recria barreiras na medida mesma em que faz cair outras. Essas novas barreiras se evidenciam nos próprios símbolos da união, como é exemplar no caso da ponte que une as cidades de Posadas, na Argentina, e de Encarnación, no Paraguai. “Al estar imbricado con ciertas políticas de endurecimiento y reforzamiento de las fronteras, un puente puede terminar separando dos orillas.” (Grimson, 2000: 96 ) O que para uns, especialmente para as autoridades nacionais é símbolo de integração latinoamericana, ou dissolução de fronteiras, para outros pode ser marco de separações e disputas, de controle e repressão, como é o caso estudado por ele, das “pasaderas paraguayas“ (mulheres que, há mais de um século vivem do contrabando de pequenas mercadorias), quando se introduzem novas facilidades para que os habitantes de Posadas comprem em Encarnación. Enquanto os trabalhos como o de Alejandro Grimson tentam evidenciar as separações e novos limites que se criam com políticas de integração que bloqueiam o diálogo e o trânsito aos pequenos, há outros que investem na defesa de políticas de integração ao nível cultural, como passíveis de ajudar a integração econômica e política, sem notar as contradições que estas ocasionam. 2. Brasil e Rio Grande do Sul: de separação ou integración à separação e integração Recentemente escrevi um artígo, que está sendo publicado em alemão e que fiz circular entre os integrantes do projeto Probral, que se intitula “ Cultura Fronteiriça do Mercosul: poderes dos sem poder” (o livro em alemão chama-se Macht der Grenze/ grenze der Macht-Ringvorlesung, ed. Vervuert, 2005) Assim apresentava eu, depois de alguns dados sobre as fronteiras brasileiras, e as chamadas Cidades Gêmeas, uma reflexão sobre como a literatura regionalista do Rio Grande do Sul, em sua vertente principal, a chamada gauchesca, concorre, por um lado para reforçar os estereótipos sobre os platinos, por outro, para aproximá-los, como homens e mulheres que têm uma vida e uma cultura comum, que os une, apesar da separação política e lingüística. Aí também tratei da tradicional tensão do Rio Grande do Sul entre Brasil e Prata, que se reflete na literatura, e, mais recentemente, no cinema, e até na televisão, que encenou o livro de Leticia Wierzchowski, (Wierzchowski, 2003), sobre a revolução Farroupilha, de 1835. Sobre essas tensões e sua manifestação na crítica literária do Rio Grande do Sul, tem escrito com muita pertinência Léa Masina, que, em outubro de 2004 apresentou um texto sobre isso no Encontro de Brasilianistas da ADLAF (Associação de Brasilianistas Alemães). Sobre elas também escreve o antropólogo gaúcho, Ruben Oliven. Um resumo recente de seus trabalhos sobre o tema apareceu em inglês: „The largest popular culture movement in the Western world“: intelectuals and Gaúcho Tradicionalism in Brazil” (Oliven, 2000 a: 128-146). Aquí haveria que lembrar a luta pelo federalismo, para superar o status secundário do Rio Grande na economia e na política: da revolução farroupilha (1835-45) à revolução de 1930, bem como, a partir desta, o papel ambígüo de Getúlio Vargas. Para isso convém ainda consultar estudos do antropólogo acima citado, especialmente o artigo intitulado ”O nacional e o estrangeiro na construção da identidade brasileira” (Oliven,2000b: 59-75). Em texto anterior, intitulado “Postcolonial avant la lettre: falas e figuras de Sepé Tiarajú do século VIII ao século XX”, que está para ser publicado nas atas do Simpósio “A produção cultural do Mercosul“, realizado no Congreso de Latinoamericanistas de Bratslava, de julho de 2004, eu apresentava, com ajuda da historiadora Ieda Gutfreind, no livro que publicou sobre a Historiografia Rio-Grandense (1992), a tensão entre duas correntes da historiografia gaúcha, manifestada concretamente numa polêmica que envolveu a figura de Sepé Tiaraju, o índio que comandou a resistência dos guaranis das Missões ao tratado de 1750 entre Portugal e Espanha. Os 7 Povos se situavam na região chamada de Paraguai, mas que não coincide com o País que hoje leva esse nome, constituindo desde 1801, com a conquista definitiva das Missões pelos portugueses, território do Rio Grande do Sul. Por esse tratado, os índios e os padres tinham que abandonar suas terras, suas lavouras, suas casas e igrejas, todos os seus bens, deixando esse território para Portugal que, em troca, passaria para o domínio espanhol a Colônia do Sacramento, cujos habitantes, ao contrário, poderiam permanecer em suas propriedades Meu texto descreve como o mito de Sepé da Missão de São Miguel, aparece e reaparece na poesia e no romance, do século XVIII ao XX, e poderia servir para expressar a tensão do Rio Grande entre o Brasil e o Prata, antecipando mesmo uma visão crítica do processo de colonização, ainda em plena época colonial. Ieda Gutfreind organiza essa historiografia em duas correntes principais: a lusitana e a platina. Fazendo um histórico desde as primeiras posições defendidas por Alfredo Varela, Aurélio Porto, Rubens de Barcellos, João Pinto da Silva e Manoelito de Ornellas identifica uma tendência comum em valorizar a questão da fronteira, como definidora de Rio Grande, reconhecendo a profunda semelhança deste com os países do Prata e identificando a origem do Estado com as Missões Jesuíticas, instaladas em território gaúcho desde 1626, quando o Padre Roque González de Santa Cruz, criou aí “o primeiro núcleo estável de povoamento”, a redução de São Nicolau do Piratini, com 280 famílias. Por outro lado, a corrente oposta, na qual se situam historiadores como Souza Docca, Othelo Rosa, Moysés Vellinho e o último Aurélio Porto (post 1930) recusaria a semelhança do Rio Grande com o Prata, negaría qualquer influência deste sobre aquele e dataria a origem do Estado Gaúcho a partir do estabelecimento das primeiras estâncias e dos acampamentos militares, culminando com a criação do presídio de Rio Grande em 1737. Para a primeira tendência, Sepé Tiaraju é um digno ancestral do gaúcho, o “primeiro caudilho riograndense” (3), porque defendeu sua terra com bravura, contra a prepotência das duas potências colonizadoras, partindo para a guerra sem hesitação, apesar das condições extremamente desiguais desta. Ademais a historiadora demonstra como, sobretudo a partir de 1930, com a chegada dos gaúchos ao poder central, com Getúlio Vargas, a tendência lusitana se impôs como versão hegemônica, insistindo na vinculação do Rio Grande ao Brasil e desvinculando-o do Prata. Isso explica porque, em 1956, por ocasião do bi-centenário da morte de Sepé Tiaraju, o Instituto Histórico e Geográfico tenha emitido um parecer extremamente negativo sobre a solicitação de um Major do Exército Brasileiro de fazer um monumento ao índio missioneiro na região em que ele morreu combatendo. Essa tendência se inverte hoje em dia, com ajuda do revigoramento do Mercosul, e com base nas teorias ou transnacionais, que relativizam a nação no concerto mundial da interdependência e que a desmitificam como constructo. Na tradição poética e ficcional analisada tanto a herança lusitana quanto a hispânica se caracterizam pela insensibilidade e a violência. Nela estão flashes da vida missioneira, o impacto do Tratado de Madrid, a reação dos índios liderados por Sepé Tiaraju, a guerra, a derrota e morte do herói índio. Seu reaparecimento depois da morte e sua transformação no mito, estrela e santo. Simões Lopes Neto ( no início do XX) marca um momento alto desse registro etno-poético, com sua versão escrita do poema anônimo „O Lunar de Sepé”, ouvido segundo ele de uma velhinha mestiça—Maria Genória Alves. Do longo poema destaca-se o refrão pela contundência com que acusa e lamenta a violência colonial disfarçada em proteção:
A melopéia, retrabalhada por Simões, traz vestígios da voz popular que mitificou e santificou Sepé, talvez já no século XVIII. Depois dele, ao longo do século XX a literatura gaúcha retomaria a narrativa e o canto a esse herói postcolonial porque pré-nacional e anti-colonial. Simões Lopes a retoma e estiliza em 1913, publicando-a em Lendas do Sul. Daí para a frente, alguns poemas voltam a estampar a figura mas já sem a sua voz, porém como uma espécie de apropriação letrada da narrativa popular, quase uma paráfrase da versão simoniana. O mesmo ocorre em letras de canções dedicadas à destruição das Missões e aos feitos do herói índio. 3. Alguns dados sobre o regionalismo em outras regiões do Brasil 3.1. Do indianismo ao sertanismo no Romantismo brasileiro Os índios são tema e protagonistas desde cedo na literatura brasileira, impondo-se em epopéias do século XVIII mas principalmente na poesia e no romance do Romantismo. Desde o começo, os românticos têm a idéia de fundar a naçäo com a literatura. Em primeiro lugar, pelo índio, em seguida por outros tipos que pudessem representar o Brasil autêntico e diverso. Essa literatura expressa a ideologia dominante, mas também serve, como diria Antonio Candido, de contraveneno. Na poesia, o grande representante do indianismo é Gonçalves Dias. Na ficção, José Martiniano de Alencar (Vila de Messejana/Fortaleza, Ceará, 1829- Rio deJaneiro, 1867), autor de O Guarani (1856, editado em jornal, em 1857, em livro) e Iracema (1870). Mas Alencar também quis mapear o Brasil do Sertão, com O Sertanejo (1876) e do Pampa, com O Gaúcho (1870) Como resposta a Alencar, julgado demasiadamente europeizado por escrever no centro do País, surgem romances tanto no Norte quanto no Sul, reivindicando a representação respectivamente do verdadeiro sertanejo e do verdadeiro gaúcho. Quanto ao primeiro, é célebre o manifesto de João Franklin da Silveira Távora (Baturité, Ceará 1842, Rio de Janeiro, 1888), que escreve o romance intitulado O Cabeleira (1876), apresentando-o com um prefácio polêmico, do qual destaca-se este trecho célebre: “As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais ao Norte, porém, do que no Sul, abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.“(carta-prefácio a O Cabeleira) No sul, como veremos adiante, Apolinário Porto Alegre, representante dos escritores do Partenon Literário, embora sem polemizar com Alencar, que admirava, publica o seu romance sobre o gaúcho, intitulado O Vaqueano. Mas outras regiões brasileiras foram registrando seus tipos e paisagens por meio da ficção. Os nomes, títulos e cidades assinalados abaixo podem dar uma idéia da expansão do chamado sertanismo, que antecipa a tendência mais tarde denominada de regionalista:
Na década de 20, com o aparecimento dos modernistas no centro do País, o regionalismo parece destinado a morrer, já que constitui uma tendência recusada por eles como retrógrada. Mas o que se verifica, por estudos sobre a repercussão do movimento modernista fora de São Paulo e Rio é uma curiosa combinação de regionalismo e vanguarda, que não deixa de antecipar os desdobramentos do regionalismo de crítica social a partir dos anos 30. Neste coube ao Nordeste a maior presença na crítica e historiografia literárias. Mas a tendência teve importantes representantes em outras regiões do País, especialmente no Sul. Nas décadas seguintes, essa tradição será aproveitada e retrabalhada por um escritor mineiro que, ao mesmo tempo a reafirma e se lhe escapa: João Guimarães Rosa (Codisburgo, 1908-Rio de Janeiro, 1967): Sagarana (1946). Corpo de Baile (1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962). Tutaméia (1967), Estas Estórias (póstumo). Por sua capacidade de transformar-se e permanecer, o crítico Carlos Garbuglio atribuiu certa vez ao regionalismo um „fôlego de gato.” 4. Formação e transformações da gauchesca brasileira no quadro do regionalismo sulino e brasileiro Aqui também o objetivo é fazer um breve e esquemático histórico, com os principais nomes de autores e obras, para que, quem conhece, como Sabine Schlickers, melhor que nós, brasileiros, o caso do Uruguai e da Argentina, possa buscar do lado de lá, como tentamos buscar do lado de cá, as semelhanças e diferenças, bem como para que a comparação nos ajude a pensar as questões mais gerais que estão em pauta, como a das identidades nacionais e regionais (em duplo sentido) das fronteiras políticas e culturais, das forças integracionistas e separatistas e do papel da literatura nessa dinâmica no passado e no presente. Um quadro histórico e outro com os principais momentos da produção literária, juntamente com curtos comentários, podem ajudar a equacionar estudos mais detalhados desenvolvidos pelos outros integrantes do projeto. 4.1.Quadro histórico: Com o Brasil, contra o Brasil: 35 Contra o Prata, com o Prata. Desde Tiaraju 1680 Fundação da Colônia do Sacramento, 1828 (desocupação da Cisplatina); 1750 Guerra Missioneira 1835-45, Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha 1865- Guerra do Paraguai 1884- Liberação dos escravos no RGS. (no Brasil, 1888) 1893- Revolução Federalista entre liberais e republicanos (Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros) 1923- Revolução de 23 entre Maragatos e Chimangos 1930- Revolução de 30, sobe Getúlio Vargas 4.2. Produção Literária O regionalismo tem, no mínimo, como diria Antonio Candido, dois gumes: Contra o Brasil, com o Brasil, desde os modelos nos quais se baseia até a ideologia que é a dos fazendeiros, mas que também pode identificar-se com o povo massacrado, o peão de estância, tido por historiadores críticos como „bucha de canhäo”. Nesse sentido, faz emergir a memória do peão, do índio, do negro, da mulher, que muitas vezes a própria historiografia conservadora tenta apagar, quando promove mitos como o da democracia racial na Estância, entre outros. 4.2.3. Partenon Literário (1869-1880), Cantos da Monarquia e poesia popular: Na poesia, o gaúcho aparece primeiro nos chamados cantos da Monarquia, do cancioneiro anônimo ou assinado. Neles ocorre algo que Walnice Nogueira Galvão chamou, na tradição nordestina, de „insidiosa presença”, qual seja, a do cavaleiro medieval, sob o homem rural idealizado. Já Donaldo Schüler (Schüler 1987) opõe ao cancioneiro da Monarquia, idealizador do gaúcho e afinado com o ponto de vista dos estancieros, o Tatu e a Chimarrita, figuras populares de uma espécie de cancioneiro menor, que corre paralelo a esse. O primeiro romance brasileiro é atribuído por Guilhermino César, crítico e historiador da literatura riograndense, a José Antonio do Vale Caldre Fião (Porto Alegre, 1823, São Leopoldo, 1876), A divina pastora (1847), O corsário (1851). Ele inaugura, com seu romance de 1851, antes mesmo da afirmação da gauchesca, o romance regionalista do litoral. Mas o representante da ficção que tem o gaúcho por figura central é Apolinário José Gomes Porto Alegre (Rio Grande, 1844-Porto Alegre, 1904), autor de O Vaqueano (1872) e de Paisagens (1875), além de um cancioneiro, só publicado no século XX. Apolinário pode ser considerado um garimpeiro de primeira hora do vocabulário e das tradições típicas do Rio Grande campeiro e um dos grandes nomes do Partenon Literário (1869-1880). Essa sociedade era um espécie de clube, com promoções culturais, a publicação de uma revista, aulas para a sociedade, ramificações na província e sede em Porto Alegre, mas a sede nunca foi própria, apesar do prestígio da Instituição junto ao governo. Regina Zilbermann se pergunta quem nasceu primeiro? O gaúcho de Alencar ou o vaqueano de Apolinário Porto Alegre? Mas o livro de Alencar é de 1870, e O vaqueano, de 1872 . Apolinário tinha admiração por Alencar e o romantismo do Partenon era admirador da Grécia, embora propusesse e praticasse o descobrimiento e a valorização da cultura local. 4.2.4. Pré-modernismo: „idade de ouro do regionalismo gaúcho” No alvorecer do século XX, o regionalismo brasileiro ganha força, constituindo o pré-modernismo, nas palavras de Guilhermino César, a idade de ouro da tendência no Rio Grande. Um marco importante, na tematização do gaúcho, contraposto ao sertanejo, na trilha de Alencar mas de modo muito próprio, são algumas páginas antológicas de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em que o grande escritor faz um paralelo vivo e contrastante desses dois tipos brasileiros. Mas o grande nome da gauchesca é um gaúcho de Pelotas, João Simões Lopes Neto (Pelotas, 1965-1916, Pelotas), cuja obra se resume a poucos livros, mas definitivos: Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1911), Lendas do Sul (1913), Casos do Romualdo (1914, em jornal, 1952, em libro). Nos livros de contos, casos e lendas, Simões Lopes narra a história do Rio Grande pela ficção. Uma história que se faz do ponto de vista do peão pobre, numa linguagem misturada. Contra o castelhano pero no mucho... Nesse primeiro decênio do século XX, aparece também a ficção de Alcides Maya (4). Desde cedo ele e Simões são vistos pela crítica como polos opostos, sendo Maya vinculado ao naturalismo e à sua visão pessimista, enquanto o segunto se vincularia à tradição popular e mítica, embora nostálgica, mais positiva na visão do gaúcho. Uma visão semelhante a de Maya, do lado uruguaio, encontra-se em Javier de Viana, escritor naturalista como aquele. Em texto anterior, tive oportunidade de estudar comparativamente alguns contos de Simões Lopes e de Javier de Viana, e ao contrário das afirmações da crítica sobre a influência deste sobre aquele, a conclusão a que cheguei é de que o escritor uruguaio teria mais a ver com a obra de Alcides Maya, o que vem sendo estudado mais de perto pela especialista neste autor, Léa Masina. Em livro, intitulado No entretando dos tempos, literatura e história em João Simões Lopes Neto (1988), chamo atenção para algo que a crítica havia desconsiderado até então, que se pode formular como a releitura de Martín Fierro, de Hernández, não apenas por Simões Lopes mas, depois dele, por Ramiro de Barcellos (5) e, mais tarde, por Cyro Martins e por Erico Verissimo. João Simões Lopes Neto, pioneiro, busca, na tradição oral, vestígios da formação híbrida do gaúcho (cristão e árabe, índio, branco e negro) e dos percalços da sua história, do ponto de vista do peão velho, Blau Nunes. Benjaminianamente, ele guia o leitor da cidade pelos caminhos do Rio Grande e do seu passado: do povoamento à vida nômade de preadores de gado, desta à formação e desenvolvimento das primeiras estâncias, pouco a pouco cercadas e racionalizadas a custo do desaparecimento de um modo de vida e convivência tradicional que, nostalgicamente, só resta relembrar, decodificando os sinais deixados na paisagem do pampa transformado. No livro póstumo, Casos do Romualdo, é como se Blau Nunes apresentasse o mesmo mundo pelo avesso. Esse mundo dos avessos exige a transformação do próprio Blau, de “genuíno tipo crioulo riograndense”, “guasca sadio”, “perene tarumã verdejante”, “rijo para o machado e para o raio”, “desempenado arcabouço” mesmo aos oitenta e oito anos, num anti-gaúcho, o caçador mentiroso, Romualdo, “baixinho e gordo”, “ruivo e imberbe”, embora ainda “homem para as ocasiões”. O Blau, assim transformado, num outro pampa e num Rio Grande outro, não pode ser levado a sério nem por ele mesmo e suas estórias agora se querem um pouco parecidas à anedota (6). 4.2.5. Modernismo e Regionalismo Na década de 20, chega o modernismo no Rio Grande do Sul e é assimilado pelo seu regionalismo, agauchando-se com Augusto Meyer, Vargas Netto e outros poetas, prosadores e críticos que assimilaram as conquistas das vanguardas do Centro do País sem negar suas tradições próprias, mas pelo contrário, reivindicando como uma espécie de precursor local a João Simões Lopes Neto. No conto imperou, como tive oportunidade de estudar com detalhes em Modernismo e Regionalismo: o caso gaúcho (1978), o padrão descritivo da mancha e o esquema narrativo do desafio, em que o homem da terra saía sempre vitorioso contra os castelhanos ou visitantes de fora. Houve também uma espécie de regionalismo do litoral e da serra gaúcha, manifestados sobretudo na poesia. Regionalismo de 30 Em 30 ou no clima de engajamento de 30, surgem pelo menos dois autores importantes do regionalismo néo-realista o néo-naturalista, que correspondem, no Sul do Brasil, à mesma corrente do Nordeste: Ivan Pedro de Martins (Abadi de Pitangui, ES, 1914) Fronteira agreste (1944) Caminhos do Sul (1946). Cyro Martins (Quaraí, RS. 1908, Porto Alegre, 1995), autor de Campo Fora (1934) conhecido mais tarde pela chamada trilogia do gaúcho a pé: Sem rumo (1937), Porteira Fechada (1944), Estrada Nova (1954). Além desses livros mais conhecidos, o autor escreveu outros romances, bem como ensaios de crítica literária e de psicanálise. Cyro Martins inaugura a ficção do chamado gaúcho a pé. Como crítico, faz um balanço mais equilibrado da tradição em que se insere, situando Simões e Maya de modo a distingui-los sem, entretanto, esconder o que ambos têm em comum. Na ficção, pela denúncia da situação do pobre expulso do campo com a modernização das estâncias, acaba desenvolvendo algumas intuições de Alcides Maya. Erico Veríssimo e depois Estava aberto o caminho para um balanço de grande fôlego. Em 1949 aparece a obra prima de Érico Veríssimo (que já era escritor conhecido por seus romances urbanos): O Continente, primeiro livro da trilogia O tempo e o Vento, obra que representa, como Guimarães Rosa, mas de outro modo, um reforço e uma superação do regionalismo gaúcho e brasileiro. Érico presta nessa obra só terminada em 1961, com a publicação de O Arquipélago, uma homenagem ao gaúcho desbravador e pioneiro mas, ao mesmo tempo, critica a tradição machista e violenta em que ele aparece, desenvolve-se e decai. A trilogia percorre 200 anos da história do Rio Grande do Sul e das suas relações com o Brasil e o mundo, através da estória da família Terra-Cambará, sua formação, ascensão e decadência. No último livro da série, enfoca-se justamente a decadência e desvenda-se o ponto de vista sob o qual é revisada essa história, ou seja, a perspectiva de um dos três filhos varões do Dr. Rodrigo Cambará, o escritor Floriano Terra Cambará. Alter ego de Érico, Floriano Cambará, conta uma história que, nessa última parte, vai de 1920 a 1945, mas é narrada a partir de um presente histórico, marcado profundamente pelo encerramento da chamada Era Vargas, com o suicídio deste em 1954, quando se anunciam possibilidades de outros Brasis, apresentadas ainda como uma espécie de enigma que o narrador tenta decifrar. Floriano pode ser lido como metáfora das relações entre os intelectuais e o poder (7), recusando tanto a continuidade do coronelismo quanto o engajamento partidário e a ortodoxia comunista (caminhos trilhados respectivamente por seus dois irmãos). A alternativa liberal, representada por Floriano, ou o que poderíamos chamar de um certo humanismo socialista, com que o próprio Érico costumava identificar-se, seria híbrida, porque masculina e feminina, ao mesmo tempo, na medida em que contrapõe a frágil mas firme defesa da vida por parte das mulheres à violência dos machos só aparentemente fortes. Mas Floriano, como Érico, reconhece o seu “meio pertencimento” a esse “mundo de bárbaros”. Por isso mesmo, narrar a história da família é também repassar diversas iniciações de menino e moço, da iniciação sexual à iniciação guerreira. De ambas ele não sai sem traumas e sem ressentimentos. O registro de suas impressões no “Caderno de pauta simples”, de onde deriva o romance, é, simultaneamente, vingança e terapia. Depois de Érico novos romancistas e contistas tematizam também criticamente a história do Rio Grande do Sul, buscando levar adiante, mas de modos distintos, a recusa da violência e do machismo, problematizando o fronteiriço de modo mais intencional do que antes. Abaixo, arrolamos alguns nomes, entre outros, para ficarmos apenas com a região da campanha, mas as regiões dos italianos, dos alemães e de outras culturas de imigrantes também têm seus romancistas, poetas e contistas. Todos os autores citados têm vários livros, mas destaco aqui apenas um ou dois de cada: Luiz Antonio de Assis Brasil (A prole do corvo-1978; Bacia das almas- 1981), Sergio Faraco (Contos completos, 1995), Josué Guimarães (Camilo Mortágua, 1980), Tabajara Ruas (Netto perde sua alma, 1995), Roberto Bittencourt Martins (Ibiamoré, o trem fantasma, 1981), Moacyr Scliar (O centauro no jardim, 1980), Aldyr Schlee (Uma terra só (1984), Donaldo Schüler, Martim Fera (1983). Uma tradição importante a destacar, talvez marcando uma diferença com relação à Hispano-América e da qual já na época do Partenon havia exemplos, é a do humor, promovendo uma espécie de paródia da gauchesca no interior dela mesma. Isso se configura melhor com Simões Lopes, de Casos do Romualdo e com Cyro Martins, de Gaúchos no Obelisco, seguidos de Érico, com Incidente em Antares, desaguando plenamente em Luis Fernando Veríssimo, com O analista de Bagé. Erico vai ter muitos seguidores diretos ou indiretos, todos eles representantes da ficção pós 70, que desenvolvem o balanço crítico por ele iniciado, acertando contas com o passado violento do gaúcho. Um deles é Tabajara Ruas, tanto num livro mais ambicioso como Netto perde sua Alma, quanto em livros mais despretenciosos como Perseguição e cerco a Juvêncio gutierrez, com características da aventura infanto-juvenil. Nele a história do Rio Grande entra de modo mais indireto, ecoando o passado no presente, como história de fronteiras, não apenas entre o Brasil e a Argentina (a estória se passa em Uruguaiana, cidade gêmea com Passo de los Libres), mas também, entre o passado e o presente, entre a violência e a racionalidade, temperada de afetividade. Trata-se da trajetória do contrabandista, Juvêncio, filtrada pelas memórias de um sobrinho que, já adulto, recorda os acontecimentos do dia em que o tio volta à Uruguaiana, de onde fugira há mais de sete anos, para morrer num cerco policial, comandado por um tradicional inimigo, o delegado, ironicamente denominado Facundo. A chegada, o cerco, a resistência e a morte do contrabandista são narrados paralelamente a uma partida de futebol, da qual participam o menino e seus colegas de escola. A batalha com o time rival, dentro e fora do jogo, quando se enfrentam jovens já marcados por atitudes machistas e arrogantes das elites locais, é uma espécie de reprodução paródica das relações sociais tradicionalmente assimétricas, comandadas pela violência. Na estória do legendário tio ecoa a figura trágica de Jango Jorge, protagonista do célebre conto “O contrabandista”, de Simões Lopes, bem como a figura épica do Capitão Rodrigo, cujas aventuras o menino lê avidamente no romance de Érico Veríssimo. Retalhos da vida de Juvêncio, legíveis nas lembranças do sobrinho, delineiam a figura como um gauchão, um dos últimos do velho estilo. Qual Floriano Cambará, o narrador de Tabajara Ruas rende homenagem a esse gaúcho generoso, viril, valente e violento, mas, também quer marcar, como Érico, o fim de uma era de afirmação do homem pela violência. Por isso, no final do livro, embora lisonjeado por estar sendo tratado como adulto pelo simpático e, ao mesmo tempo, sinistro rengo Maidana --companheiro de Juvêncio, que já planeja a vingança-- o menino não atende ao seu convite, deixando de tomar um trago com ele. Em vez disso vai refletir, contemplando o rio da fronteira no meio da noite e desejando, vaga mas firmemente, sair desse tempo-lugar para ser outra coisa, talvez um escritor que, sem deixar de carregar a sua histórica, relembraria o passado para abrir perspectivas a um futuro outro, a serviço do qual se perfilam narrativas como esta, nascidas de um vago remorso e marcadas pelo que um escritor contemporâneo de Tabajara Ruas, Luiz Antonio de Assis Brasil, definiu como sendo a carga pesada da geografia e da história do pampa (8), carga essa talvez só aliviada na nova geração de escritores que estariam a inventar outros Rio Grandes e outras estórias da História. Na poesia, destaca-se, a partir de 60, o poeta Carlos Nejar, cantor dos pampas mesmo em outras latitudes. Poesia escrita, mas com carga forte de oralidade. Para ser lida em voz alta, de preferência “em palanque e praça pública”, como diz o poeta. Nejar, passa de uma poesia do pampa mítico para outra da denúncia, criando um severino retirante (9) agauchado, Jesualdo, com a mesma sina de todas as vítimas do latifúndio. E, mesmo quando se distancia do tema, dos tipos e paisagens do Rio Grande, partindo para um projeto mais voltado para um diálogo amplo com a tradição literária ocidental, da Bíblia a Dante, deste a Eliot e Whitmann, o pampa vai com ele:
No seu livro mais ambicioso e menos regional, em meio a ditadores, camponeses deslocados na cidade, Eva, Jó, Beatriz e outras tantas figuras, tiradas do quotidiano ou da literatura e tornadas presentes pela fala, um dos viventes é justamente um gaúcho, sobrevivente da guerra dos farrapos :
A presença-ausência do Pampa continua nas canções das chamadas Californias e hoje se alastra pelas novelas de televisão e os casos especiais, como A casa das 7 mulheres, baseada no romance do mesmo nome de Letícia Wierzchowski (Wierzchowski, 2003). Um trabalho comparativo dessa tradição com a gauchesca platina, objeto de nosso projeto fronteiriço, indaga tanto da linguagem, das relações entre oralidade e escrita, das estruturas fragmentárias de uma ficção que oscila entre naturalismo e romantismo, quanto da especificidade do criolismo em relação ao regionalismo, das relações entre o fronteiriço, o nacional, o local e o global, o beco e o belo. Dado o desconhecimento mútuo entre o Brasil e a América Hispânica, mesmo numa comarca cultural em que se identificam facilmente as semelhanças na literatura e nas artes, a simples comparação de escritores, obras e tendências já é uma contribuição original. Intercâmbios e contrabandos reais ou imaginários a rastrear, apropriações como as que se fazem do poema de Hernández, entre outras, tudo isso é um campo aberto de trabalho que nosso projeto enfrenta ainda fragmentariamente, dada a amplitude e complexidade. Só para situar-nos um pouco mais, com respeito à tradição platina, vale lembrar que nesta a gauchesca começou com José Hidalgo (Uruguai 1788- Argentina, 1822), com as obras, Cielito patriótico (1818), Diálogos Gauchescos y la Relación que hace el gaucho Ramón Contreras a Jacinto Chano de todo lo que vio en las fiestas mayas de Buenos aires (1822). Depois dele, a tendência se desenvolveu com: Hilario Ascasubi (Córdoba,1807-Buenos Aires, 1875), com Pcom Paulino Lucero y otros poemas campestres (1833-1855), Santos Vega o Los mellizos de la flor (1872); Estanislao del Campo (Buenos Aires, 1834-1880, Buenos Aires), Fausto (1866); José Hernández (Buenos Aires, 1834-1886, Buenos Aires), Martín Fierro (1872, 1879). Esse ciclo se fechou com o célebre poema Martín Fierro e o que veio depois foi o romance gauchesco, com nomes expressivos como os de Eduardo Acevedo Díaz, Ismael, (1888) Ricardo Güiraldes Don Segundo Sombra (1926). Daí para a frente, muitos outros prosadores apareceram tanto no romance quanto no conto. Essa tradição está tratada com detalhes no texto citado de Sabine Schlickers. 5. Conclusões esquemáticas para o prosseguimento do diálogo 1. Desde 70 pelo menos, o gaúcho passa a ser igualmente personagem na música popular, especialmente as compostas para a Califórnia da Canção Nativa (concursos anuais que existem até hoje) e para o cinema. 2. No teatro, entrou em cena pela mão de um escritor português, César de Lacerda, que escreveu o drama O monarca das coxilhas, em 1867. Depois tornou a ficar de fora, mesmo daquele teatro produzido por contistas gauchescos como Simões Lopes Neto, que escreveu peças mais urbanas. No século XX, de modo satírico, reaparece na obra de Ivo Bender. 3. O regionalismo no Brasil e no Rio Grande do Sul tem que ver, desde o romantismo, como vimos, com obras que se referem a culturas e espaços rurais, distantes das grandes cidades e, sobretudo, distantes das capitais do centro do País. Nesse sentido, tem que ver com uma das acepções mais gerais do criolismo hispanoamericano, de que nos falou Sabine Schlickers no texto que nos apresentou no I Workshop do projeto Probral no qual somos parceiras. Mas, com uma diferença que se deve ao fato de ser o Brasil tão grande e diferenciado: aí a gauchesca sempre foi um, entre outros tipos de regionalismos brasileiros. Jamais foi identificada com o nacional, como ocorreu com a gauchesca uruguaia e até com a argentina, que divide até hoje escritores e críticos entre dois partidos, os que se sentem representados por Martín Fierro e os que o rechaçam como sendo expressão de uma Argentina bárbara há muito tempo superada. 4. A Gauchesca é um termo que, no Brasil, se aplica indistintamente para poema e prosa, sem fazer a diferença que se faz no Prata. 5. Essa literatura também se ressente do tradicional desconhecimento mútuo de hispanoamericanos e brasileiros, que se manifesta tradicionalmente em distintos setores da vida latinoamericana. Sempre houve um ou outro escritor ou crítico que buscou superar isso. A partir dos anos 60 o interesse de uns pelos outros foi crescendo. Mas ainda falta estudar mais, entre outras coisas, as semelhanças e diferenças, os contatos diretos ou indiretos, a produção de uma linguagem fronteiriça. Esse é um dos principais objetivos do projeto “Fronteiras Culturais e Cultura Fronteiriça na Comarca Pampeana: obras exemplares”. A comparação entre as diferentes obras e seus contextos deve permitir aprofundar as tensões aqui apenas esboçadas entre as identidades nacionais, locais e regionais que se configuram e reconfiguram historicamente, num trabalho simbólico para o qual concorre largamente a literatura em sentido estrito e em sentido amplo, especialmente aquela que, segundo Ángel Rama, se constituiu primeiro como sistema integrado de autor, obra e público na Comarca rio platense-riograndense: a gauchesca. aulino Lucero y otros poemas campestres (1833-1855), Santos Vega o Los mellizos de la flor (1872); Estanislao del Campo (Buenos Aires, 1834-1880, Buenos Aires), Fausto (1866); José Hernández (Buenos Aires, 1834-1886, Buenos Aires), Martín Fierro (1872, 1879). Esse ciclo se fechou com o célebre poema Martín Fierro e o que veio depois foi o romance gauchesco, com nomes expressivos como os de Eduardo Acevedo Díaz, Ismael, (1888) Ricardo Güiraldes Don Segundo Sombra (1926). Daí para a frente, muitos outros prosadores apareceram tanto no romance quanto no conto. Essa tradição está tratada com detalhes no texto citado de Sabine Schlickers 6. BibliografIa a, Luiz Alberto Moniz. Conflito e integração na América do Sul, Brasil, Argentina e Estados Unidos, da Tríplice Aliança ao Mercosul, 1870-2002, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2003, 680pp. CAPARELLI, Sergio, 1983: O dia em que Alegrete atravessou a fronteira, LPM, Porto Alegre. CÉSAR, Guilhermino, 1956: História da Literatura do Rio Grande do Sul, Livraria do Globo, Porto Alegre, 1956. CHIAPPINI, Ligia, 2001: Modernismo no Rio Grande do Sul: materiais para o seu estudo. São Paulo, IEB/ USP, 1972. CHIAPPINI, Ligia, 2001: In: Pesavento, Leenhardt, Chiappini e Aguiar, Érico Veríssimo: O Romance da História, Nova Alexandria, São Paulo, pp.137-157. -------------------------,1994: “Velha praga? Regionalismo literário no Brasil” in: Pizarro, Ana (org.). Palavra, Literatura e Cultura (2o. vol.). 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O parecer negativo, publicado em 26.11.55), assinado por Othelo Rosa, Moysés Vellinho e no livro, O primeiro Caudilho Riograndense, Ed. Globo, Porto Alegre, 1957. Alcides de Castilhos Maya (São Gabriel, RS. 1878-Rio de Janeiro, 1944), Ruínas Vivas (1910), Tapera (1911), Alma Bárbara (1922). Ramiro Fortes de Barcellos (pseudônimo: Amaro Juvenal) (1855-1916), autor de Antonio Chimango (1915) Trata-se de um poema satírico, que se folclorizou, conforme estuda Maria Helena Martins, no seu livro Agonia do Heroísmo, citado na bibliografia. Alusão á Guimarães Rosa, de Tutaméia, quando diz: “ estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.” Desenvolvi essa idéia em: „Flora-Floriano: impasses do escritor dos anos 30?“ In: Pesavento, Leenhardt, Chiappini e Aguiar, Érico Veríssimo: O Romance da História, Nova Alexandria, São Paulo, 2001, pp.137-157. .„O nosso pampa, tão comum e vário”. In: Martins, Maria Helena (org.). Fronteiras Culturais: Brasil-Uruguai-Argentina, Ateliê Editorial, Prefeitura de Porto Alegre, Centro Cyro Martins, São Paulo/Porto Alegre, 2002, p. 131. Mais de uma vez Nejar explicitou sua admiração pelo poema de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”. Os viventes. p. 70. |