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CENTENÁRIO de LILA RIPOLL - Diáfana Concretude | Imprimir |  E-mail

MARIA HELENA MARTINS*

 

Para o leitor comum, a figura do poeta é como imagem diáfana que perpassa suas palavras, seus versos, se constitui mais pela linguagem do que pelo referente à concretude do corpo. Difere pois do romancista, cujas criaturas parecem ora mais ora menos indicar o próprio perfil do autor. Mas essas características corresponderiam à realidade? Fernando Pessoa já ensinou sobre os desvãos do fazer poético e os desvios do poeta, entretanto, ao apontar a aura enganosa que pode envolver o leitor e a leitura, não tira dessa experiência a sua magia. E certamente a experiência estética é das que mais nos permite preencher aqueles tantos vazios que acompanham nossas vidas, dentre eles, o que separa o autor e sua obra. Pelo menos aquele autor que identificamos com o indivíduo de carne e osso, nosso conhecido pessoalmente ou por fotos, entrevistas, documentários, biografias.

Era adolescente quando conheci pessoalmente Lila, sem ter lido sua poesia, mas sabendo-a poeta. Só isso criou expectativa especial para encontrá-la. E, ao deparar com aquela figurinha serena e gentil, minha timidez deu lugar à curiosidade e ousei perguntar-lhe sobre o que escrevia. Num gesto delicado, ela foi até uma estante e de lá trouxe um livro, que me deu: “leva, em troca de tua visita e depois me diz o que achaste”.

Nunca cheguei a dizer-lhe da tristeza que senti lendo seus versos, em “De Mãos Postas”. Só bem mais tarde fui ler outros livros dela. Mas, de certa forma, pude contribuir para que se tornasse mais conhecida entre os brasileiros, quando propus que constasse do banco de dados informatizado sobre o Panorama de Poesia, do Instituto Itaú Cultural, no qual colaborei com o verbete a seu respeito. (http://www.itaucultural.org.br).

Teria sido aquele breve contato pessoal entre nós suficiente para assegurar um elo entre autora e leitora? Certamente, não. Embora esses encontros usualmente deixem marcas que a imaginação se encarrega de expandir ou o esquecimento faz se esfumarem, no caso de Lila Ripoll, a poesia se impôs.

Seus poemas levam-me a considerar quanto a existência humana é povoada de vazios, espaços inatingidos, inefáveis, dispostos entre realidade e fantasia, pensamento e ação, o sentido e o revelado, a intenção e a realização. O que se passa nesses huecos ainda é mistério que estudiosos da mente buscam decifrar. Mas talvez estejam aí importantes motivadores da poesia e da sua fruição, reveladores da natureza, dos atributos da arte, assim como os contributos que se agregam a ela, isto é, o tanto e quanto as circunstâncias de vida apresentam, que vão dando outras configurações à criação. E aqui, valorizando o contexto, não posso deixar de pensar na região pampiana, nos ares fronteiriços desta terra.

Inegável a chispa poética que ilumina tantas mulheres ( nadja, Suzana Vargas) e tantos homens de pequenas e distantes cidades-irmãs da fronteira do Brasil com o Uruguai, como Livramento e Rivera, Quaraí e Artigas, para ficar só nessas. Há algum tempo pesquiso características dessa região e sempre se evidencia algo especial. Algo pouco explicável, como a proporção surpreendente de artistas e personalidades nascidos e criados em Quaraí, por exemplo, que atingem projeção nacional e internacional incontestável. Ao constatar isso, sou levada a conjeturas. Por um lado, ressalta o isolamento, a marginalidade a que tais cidades e seus habitantes foram relegados durante décadas, pelos governos centrais de seus respectivos países, ao mesmo tempo limitando-as geograficamente e prejudicando seu avanço econômico. Por outro – e paradoxalmente -, o fato de serem de fronteira também resulta em desafio e incentivo, pois essa situação indica sua condição de cidades de passagem, de trânsito para outras terras; também insinua que sua gente está acostumada a acolher forasteiros e a conviver com eles, não raro com o diferente, o inusitado.

Tal quadro resulta promissor, pois evidencia potencial para superação de dificuldades, possibilidades de expansão, de amplitude na visão de mundo para essas comunidades. Estariam nessa vivência fronteiriça, na consciência de limites e no desejo de superá-los as raízes do impulso criador em tantos quarainhenses? Isso transparece ao tomarmos como exemplo Lila Ripoll e sua obra.

Um vistaço em sua trajetória revela a determinação de seus passos. Em Quaraí, onde nasceu e viveu até a juventude, “aprendeu a viajar no pensamento” (“No Casarão”). Indo para Porto Alegre, formou-se em Piano no Conservatório de Música, como muitas jovens de sua geração. Mas o diferencial aparece quando, na década de 30, se torna diretora do Departamento Cultural do Sindicato dos Metalúrgicos, onde militou pelo Partido Comunista, além de integrar o gabinete do Secretário da Educação Coelho de Souza. Em 38 publicou seu primeiro livro, De Mãos Postas, cujo título pode sugerir contrição religiosa, espiritual, mas são as exigências da vida e suas carências que nele ressaltam. Entre 1945 e 55 colaborou na revista literária A Província de São Pedro e no jornal A Tribuna, órgão do PC. Foi ainda membro do comitê editorial da Revista Horizonte. Em 1950, foi candidata a deputada estadual pelo Partido Comunista e em 1951 participou do grupo Partidários da Paz, vinculado ao Conselho Mundial da Paz, com Graciliano Ramos, Dyonélio Machado e Laci Osório. Ainda em 1951, recebeu o prêmio Pablo Neruda da Paz, pelo livro Novos Poemas, em Praga (Checoslováquia). Foi presa após o golpe militar de 1964, e libertada em seguida por motivo de doença. Sua obra poética inclui ainda os livros Por quê? (1947), Primeiro de Maio (1954), O Coração Descoberto (1961) e Águas Móveis (1967), entre outros. Morreu em 1967, lutando bravamente por suas convicções ideológicas e existenciais, como revela em seu poema Grito:

.................................
Não. Não irei sem grito.

Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras —

que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária.
Definida.

Publicado no livro O Coração Descoberto (1961).

De modo geral sua poesia é vinculada à segunda geração do modernismo, sendo menos marcada pelo engajamento político do que por seu amor à liberdade. Acima de tudo, como observa Cyro Martins, ela "soube preservar o seu lirismo, as suas cismas de poeta autêntico, mesmo quando seu estro serviu a motivos de civismo heróico” “Lila Ripoll: mil vidros partidos”. In: ___.Rodeio: estampas e perfis. Porto Alegre, Movimento, 1976, p.107-108.)

De fato, ainda que ela também expresse força e destemor, quase um libelo, em que as fragilidades paradoxalmente se fazem propulsoras de energia, por piores que sejam os momentos ( Cf. Poema VI), é difícil não pensar na dicção poética romântica, quando solidão, silêncio, tristeza, dor pontuam a poesia, quando a natureza e os sentimentos se entrelaçam em metáforas, numa cadência suspirada. E, superando o indivíduo, o eu poético se alça no tempo e no espaço, fazendo da poesia de Lila ser um lírico apelo, um manifesto sussurrado, um lembrete dos insondáveis, dos não-ditos, como em Primavera:

........................
Minha pobre ternura ignorada,
minha heróica ternura impressentida,
teima em mostrar-se como a primavera,
pensa em tocar de leve a tua vida.

É difícil ser poeta e ser mulher.
É difícil cantar sem revelar.
Pode o poeta contar o seu segredo,
mas a mulher o seu deve guardar.

...........

Maria Helena Martins


* Comunicação apresentada durante as comemorações do Centenário de Nascimento da poeta, em Quaraí, agosto de 2005.