X Jornada CELPCYRO

img banner

Informe CELPCYRO

Cadastre-se e receba nosso INFORME
Nome
E-mail*
Área de Atuação

Redes Sociais

  • Twitter
  • Windows Live
  • Facebook
  • MySpace
  • deli.cio.us
  • Digg
  • Yahoo! Bookmarks



A economia não é tudo! | Imprimir |  E-mail

Entrevista de Cyro Martins à revista Amanhã, Porto Alegre, junho de 1994, p. 12-14

Cyro Martins foi menino numa venda de beira de estrada, no interior do município de Quaraí, no pampa gaúcho. Por trás do balcão viu desfilarem os personagens que povoariam seus livros - agregados, parceiros, peões de estância, tocados para a cidade pela falta de perspectiva no campo.

Numa conferência, há 60 anos, ele usou pela primeira vez a expressão “gaúcho a pé”. Dois anos depois publicou “Sem Rumo”, o primeiro dos três romances em que descreve a triste saga desse gaúcho sem cavalo e sem distância que resultada falência da economia tradicional, de base pastoril, no Rio Grande do Sul. Nesse processo social, que ainda não se completou em quase um século, o gaúcho campeador, “a romântica figura”, estilizada por Euclides da Cunha, transforma-se no gaúcho a pé, que vai povoar as vilas pobres na beira das cidades .

Hoje, o trabalho literário de Cyro Martins abrange quase duas dezenas de títulos (contos, novelas, romances, ensaios), todos eles centrados no tema regional, sem ser regionalista.

Mas o ficcionista é apenas uma parte de Cyro Martins. Ele tem outros sessenta anos dedicados à medicina e à psiquiatria, campo em que está entre os pioneiros no país. À prática diária no consultório, acrescenta uma intensa atividade intelectual - seus ensaios sobre temas psicanalíticos renderam quase uma dezena de livros. E, aos 86 anos, continua em plena atividade: atende de seis a oito pacientes por dia e dedica o resto de uma jornada, nunca menor do que 10 horas, à pesquisa, à leitura e aos textos que produz constantemente. Há poucos dias passou para seu editor os originais de mais um livro.


AMANHÃ - O sr. cita uma frase de Freud: “Não se pode admitir que os motivos econômicos sejam os únicos que determinem a conduta da sociedade”...

CYRO MARTINS - Freud disse isso numa crítica ao socialismo. Mas ela vale também para a sociedade capitalista, porque há uma tendência realmente de reduzir tudo à questão econômica. A economia não é tudo. Ela apenas parte de um problema maior.

AMANHÃ - Qual é a imagem que o sr. faz do empresário?

CYRO MARTINS - O empresário é uma figura dominante no mundo moderno. O mundo civilizado, contemporâneo, não pode viver sem o empresário. Nenhum estudioso de sociologia, psicologia, literatura ou política pode desprezar o empresário como tipo representativo de uma maneira de ser da segunda metade do século XX. Obviamente, como em todos os setores, há os mais avançados e outros ligados ao passado. Entre os médicos também é assim. Mas os que estão voltados para o futuro são os que levam o mundo para a frente.

AMANHÃ - O sr. acredita numa alternativa a essa sociedade capitalista?

CYRO MARTINS - Eu emprego aqui a expressão sociedade capitalista sem nenhuma intenção política ou de restrição. Falo de uma realidade, principalmente depois do fracasso do socialismo, que eu nem sei se foi socialismo, ninguém sabe. Parece que o que houve foi uma tremenda ditadura. Eu tinha até simpatia por isso, na ilusão de um mundo novo que estava nascendo, levado pelo meu espírito progressista. Mas depois fui vendo que não era assim. A realidade foi filtrando.

AMANHÃ - Esse ideal de um mundo novo esteve muito presente neste século... Ele está morto?

CYRO MARTINS - Não, esse ideal de um mundo melhor faz parte da natureza humana. É o que faz a humanidade avançar. Essa crença no socialismo foi uma atitude idealista, generosa de muita gente que ofereceu a própria vida. Creio que ela vai permanecer, mas buscando outros caminhos. Uma das dificuldades do ser humano é desfazer-se das ilusões. Nós estamos sempre buscando o caminho da liberdade para o pensamento, mas esta liberdade é muito delimitada. Isso é da própria essência do homem e das circunstâncias de vida. Nossas pulsões internas, nossos instintos se chocam muitas vezes com as circunstâncias externas que se chamam civilização. Esta civilização é composta de normas e condutas que são limitantes.

AMANHÃ - Muitos empresários estão atraídos pelo pensamento liberal. Como o senhor vê esta tendência?

CYRO MARTINS – É positiva, mas eu não sei até onde os empresários seriam capazes de ter uma atuação mais ou menos uniforme coletivamente. Pela própria natureza da atividade deles. Há muita rivalidade. Então isso dificulta uma ação liberal em benefício da coletividade. Mas não há dúvidas que a atenção dos empresários em relação aos seus colaboradores, que são os seus funcionários, tem melhorado bastante. Tem mudado. As injunções que as leis políticas criam influem nessa postura, mas também há uma colaboração e deve haver .

AMANHÃ – A situação do nosso país hoje desperta em muitas pessoas sentimentos pessimistas quanto ao futuro. O sr. está pessimista?

CYRO MARTINS – Não. Minha atitude é mais uma atitude, apesar de tudo, no progresso humano em todos os sentidos, material, intelectual e moral. Apesar do quadro atual ser terrível. Pior do que isso só uma guerra. Mas eu confio.

AMANHÃ – No caso brasileiro, já não é uma guerra?

CYRO MARTINS – É uma guerra. Como dizia um amigo meu mexicano, “Por que temer a Terceira Guerra, se nós já estamos nela?” E de lá para cá só se agravou. Mesmo assim, eu sou otimista porque estes instintos destrutivos vão ser sobrepostos pela tendência a uma vida superior. Com mais tranqüilidade, harmonia, colaboração, entendimento. Agora, tem uma coisa fundamental que sem isso vai ser difícil a gente progredir e melhorar. É a questão da família. Ela está muito combatida como instituição. Com uma família combatida, os filhos são malcriados. Todo o ser humano que tem uma criação desastrosa se cria com uma revolta tremenda. É um delinqüente em potencial. E raros são aqueles que não vão para a delinqüência mesmo. O que são os meninos de rua? Vêm das vilas, das coroas de miséria que cercam as cidades, não só as grandes mas também as pequenas. Meninos criados sem pai e sem mãe. Muitos até têm pai e mãe, mas o pai levanta de madrugada, vai para o serviço. A mãe também. Estas crianças são criadas sem calor materno ou paterno. São odiadas porque vieram ao mundo. Então só podem ser criaturas cheias de ódio. Os assaltantes que nós vemos por aí têm 20 anos ou menos, sem falar nas gangues de crianças.

AMANHÃ – E as raízes disto onde estão?

CYRO MARTINS – É a falta de amor. Porque a fonte de amor sempre está na família. Por isso é que o pai e a mãe devem ter uma vida relativamente confortável. Para que também não estejam cheios de ódio da sociedade.

AMANHÃ – Mas numa sociedade cheia de desigualdades como a nossa ...

CYRO MARTINS – Por isso mesmo é que é difícil. Nós somos otimistas porque sabemos qual o remédio, mas a aplicação dele é dificílima. Porque aí tem que haver modificações. Não quero usar a palavra reforma porque é muito usada, batida e está um pouco desprestigiada. Mas devem haver modificações na estrutura social de forma que esta diferença entre os que possuem, os que têm capital e os que não têm nenhum diminua. Assim será possível que as pessoas se criem num relativo conforto porque só isso é capaz de moldar uma criatura humana relativamente equilibrada.

AMANHÃ – No caso brasileiro, é um processo histórico que vem se agravando...

CYRO MARTINS – Eu não diria que é um processo histórico no Brasil porque isto é um fenômeno que vem ocorrendo no mundo inteiro. Até num país poderoso como os Estados Unidos eles estão alarmados com a quantidade de crimes da juventude, tomando providências como a proibição da venda de armas e etc. A Alemanha, aquele horror de explosões neo-nazistas.

AMANHÃ – Então, a raiz disto não está apenas na questão econômica?

CYRO MARTINS– Não. Está nos instintos agressivos do homem. Estes instintos agressivos que cada um de nós tem. Mas eles se modificam e vão se moldando à conjuntura social na medida em que as pessoas são criadas com amor, carinho, menos motivos de ódio. Uma conjuntura social terrível como esta em que vivemos só pode agravar.

AMANHÃ – O sr. tem feito muitas conferências sobre essas questões, a família principalmente. Qual é seu público?

CYRO MARTINS – São professoras, psicólogos, colegas da psiquiatria e da psicanálise, mas também pessoas de cultura geral interessadas. As pessoas acorrem com interesse. São pessoas basicamente do povo, mas de um nível intelectual mais ou menos alto. De qualquer modo, estes interessados, entre os quais nos incluímos, são uma minoria insignificante.

AMANHÃ – Como aumentar este interesse?

CYRO MARTINS – Nós falamos, escrevemos... acredito que a escola primária deverá ter um papel muito importante neste sentido. Ao mesmo tempo, através da palavra falada e da escrita, nós devemos incutir nas pessoas o espírito familiar. A pessoa quando casa deve saber que está, ali, tratando do futuro da humanidade. Infelizmente, é difícil. Os colégios estão tão mal. Só se ouve falar de greves, brigas entre os professores e o governo, de forma que não é fácil pensar nestas coisas tão elevadas.


AMANHÃ – O sr. diz que esta perplexidade, essa sensação de uma realidade caótica não é uma coisa do Brasil, da situação brasileira. É um sintoma do final do século?

CYRO MARTINS – A humanidade está sempre evoluindo através de seus inventos. Atualmente, de forma muito veloz. É difícil fazer prognósticos. Olhamos o futuro com apreensão. É diferente dos fins do século passado, da “belle epoque”, quando se acreditava que com o advento da ciência a humanidade entraria em grandes realizações, progresso e paz. Ao mesmo tempo, estes países eram colonialistas terríveis nas Américas e África. Era a “belle epoque” para eles. A Holanda foi o pior dos países colonialistas. Nós temos por hábito lastimar os portugueses e dizer que os holandeses teriam sido melhores. Mas parece que foi até uma loteria. As crueldades que os holandeses cometiam eram terríveis. Em seguida, a “belle epoque” esmoreceu, porque já começaram as guerras. O século XX começou. Duas guerras e, ao final, tem-se no centro da Europa o horror da Bósnia, e as Nações Unidas não conseguem acabar com aquele trucidamento.

AMANHÃ – A guerra é um tema constante das suas palestras. O que o sr. diz?

CYRO MARTINS – A grande sombra que paira sobre a humanidade é a ameaça atômica. Dizem que acabou porque não se fala muito e porque destruíram alguns arsenais. Isso é uma ilusão. A humanidade nunca mais vai se livrar da bomba. Mesmo que destruam todos os arsenais, a fórmula está muito bem guardada e a qualquer momento pode ressuscitar...

AMANHÃ – Mas a questão dos arsenais tem sido tratada como secundária... A possibilidade de uma guerra atômica parece remota.

CYRO MARTINS – Parece, mas não é. Posso lhe garantir, é atualíssima. Há pouco tempo, mandei um ensaio para uma revista da Colômbia, com o título “Fantasia e Realidade do Homem Contemporâneo” Trata do medo do homem, da insegurança ante a convulsão social e a guerra. É um medo perpétuo não consciente. Embora se disfarce e as pessoas participem muito de coisas como torcidas esportivas, muitas diversões, para não ver, esquecer, o homem não conseguiu se livrar da psicose guerreira.

AMANHÃ – O sr. diz que a guerra é uma regressão...

CYRO MARTINS – O perigo da regressão é contínuo não só nos indivíduos, mas nas sociedades. Uma atividade guerreira, neonazista é uma regressão. A Europa toda tem problemas terríveis com os imigrantes, principalmente os das ex-colônias...

AMANHÃ – O sr. acha então que esse sentimento de que o Brasil é o fim do mundo é na verdade um pouco de provincianismo?

CYRO MARTINS – Eça de Queiroz resumia isso com uma estória. Alguém chega num povoado do interior e conta que houve uma grande enchente na China, tendo morrido 20 mil pessoas. Ninguém se impressionou. Daí a pouco chegou alguém contando que dona Fulana tinha quebrado a perna, e foi um reboliço. O que está perto nos impressona mais. No Brasil, parte da população está em dia com o mundo. Aí entram empresários, intelectuais, cientistas, sociólogos. Gente que faz boa figura em qualquer parte. Ao mesmo tempo, existe uma multidão de ignorantes. Entre estes existem ainda os mais ignorantes, os analfabetos. Ignorância e pobreza, num círculo vicioso.

AMANHÃ – Quando se fala destas coisas, a tendência é perguntar: fazer o quê?

CYRO MARTINS – Nosso grande trabalho é procurar uma via de saída para essa dissociação. Integrar esses dois grupos gigantescos. Esse foi o problema que eu quis abordar quando usei a expressão “gaúcho a pé” em 1935 e depois quando escrevi “Sem Rumo”. A primeira vez que falei sobre o assunto foi em Quaraí, na Semana do Cobertor, que as senhoras da sociedade, embaladas pelo mais doce espírito cristão e pela mais absoluta inconsciência da realidade humana que as cercava, iriam distribuir aos pobres. Enquanto eu falava, um fazendeiro me olhava fixamente. Depois ele disse: “Eu só estava esperando, procurando ver a saída para o causo que o senhor ia dar”. E eu respondi: “Olha, não vou dar saída nenhuma porque eu não tenho. Isto compete aos empreendedores, homens de negócios e sobretudo aos políticos. Eles devem encarar este problema. Nós escritores apenas o levantamos. Temos de levantar a lebre”.

AMANHÃ – Foi a primeira vez o que sr. usou a expressão “gaúcho a pé”?

CYRO MARTINS – É, eu usei pela primeira vez em Quaraí, naquela conferência em 1935. Foi publicada em 36 pela Gazeta de Alegrete, mas se perdeu. Houve um incêndio e os jornais daquela época foram atingidos. Naquele tempo não se tinha nem máquina de escrever, que dirá originais. Usei a expressão antes do livro. Só depois publiquei “Sem Rumo”, em 1937. O nome do livro é bem expressivo e a expressão é minha mesmo. Não há grande glória nisso. “Gaúcho a pé” é o gaúcho sem a estampa histórica. O meu pai mesmo foi para a cidade, mas voltou porque ele dizia: “Eu não sou daqui, sou lá de fora”.

AMANHÃ – Para finalizar, por onde começa a tarefa de integrar o país?

CYRO MARTINS – Começa por nós mesmos. E devemos começar hoje. Não esperar por algum dia.

-------------------------------

* pág. 12-14 (transcrição autorizada pela redação da revista)