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A ostentação da meia-ciência e o Humanismo Médico | Imprimir |  E-mail

Rogério Gastal Xavier


É uma satisfação estar aqui com vocês para algumas considerações sobre a prática da medicina e literatura, atendendo ao honroso convite formulado pelos organizadores da VII Jornada Cyro Martins sobre Saúde Mental.

A expressão do título “ostentação da meia-ciência” eu a tomei de Cyro Martins, contida no livro Contos Escolhidos, reeditada pela L&PM Pocket, em 2008, com a organização de Maria Helena Martins. Nele, Cyro conta o seu retorno a Quarai, logo depois de formado em medicina, em 1933. Pensava, então, em praticar a medicina geral na sua terra, para retribuir com gratidão aos ensinamentos que recebera da família. Lá trabalhou com devoção, porém um sentimento de insatisfação se avolumava, pois sentia muita falta do ambiente culto e dos amigos com que convivera em Porto Alegre. E também temia transformar-se em mais um médico três P, como se dizia na campanha, para atender “parentes, pobres e putas”. Procurou então grupo que se reunia na casa da poetisa uruguaia Ophelia Calo Berro de Ribeiro, a Dama do Saladeiro, que o valorizou como escritor – naquele ano de 1934, fora editado pela Edit. Globo, o seu livro de contos “Campo Fora” – incentivando-o a buscar outros horizontes. Daí partiu para a formação em Neuropsiquiatria e, depois, à Psicanálise. Não esquecendo os conselhos da Dama do Saladeiro, “seja um escritor de verdade, não se afaste das pessoas como outros da academia”.

É desta época (1938), o poema “Coitado do doutor...” escrito por Lila Ripoll, também quaraiense:

Estou doente. Bem sei. Que desencanto!
E o médico a insistir que nada tenho.
Coitado do doutor! Estudou tanto!
E afinal que valeu tão grande empenho?
– “O coração vai bem. O pulso igual.
Não há febre. Não vejo nada, nada.
Está tudo perfeito. Bem normal.
Pode ficar tranqüila, sossegada”.
O conselho dos outros...E é doutor!
Estudou. Tem anel. Tem um diploma,
 – Atestado de um sábio curador! –
Eu ouço o que ele diz, mostrando crer,
E às vezes quase grito já sem calma:
– O senhor não podia compreender
Que o doente não é o corpo, mas a alma?
Não digo, porém. Não vale a pena.
Ele leu tanto livro. Estudou tanto!
Se a vida vai correndo tão serena,
Que importa a dor que traz este meu pranto?
E o doutor vai embora satisfeito.
A consciência tranqüila...O anel no dedo...
E eu me atiro vestida no meu leito...


No século XVIII, Molière pontificou no teatro com “Le malade imaginaire” (O doente imaginário), ilustrando os achaques das mulheres que dariam origem à histeria, neuroses, as doenças psicossomáticas. E, em “Le médecin malgré lui” (O médico apesar de si mesmo), denunciou o risco do profissional atuar em autoproveito.

Quem poderá esquecer Paulo Autran em “Knock – O Triunfo da Medicina”, do autor Jules Romain, em que o falso-doutor faz um pacto comercial com o farmacêutico e o diretor da escola, da pequena cidade onde se instala, para instituir que “todas as pessoas são doentes, até provado o contrário e necessitam ser tratadas”? Evidências do abuso na tomada de medicamentos, do lucro e poder que proporcionam. Hoje, aí está o conflito de interesses do profissional da área da saúde com a indústria farmacêutica. Será que, bastando emitir declarações de interesses, está acertada a ética?

O médico e romancista AJ Cronin, autor de “Cidadela”, escreveu sobre a precariedade no atendimento dos mineiros de carvão na Grã Bretanha, na primeira metade do século XX. Fez bom serviço pela literatura: deu início à medicina social e as bases para a Organização Internacional do Trabalho, mediante normas técnicas e de compensação de salários pela saúde.

A saga do paciente crônico pode ser encontrada no poema “Pneumotórax”,
de Manoel Bandeira, que passou a vida temendo a recidiva da tuberculose:


Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.


Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.

...............................................................................................................

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.


Albert Camus, filósofo de formação, prêmio Nobel de literatura em 1957, escreveu romances de forte conteúdo social, como “A peste”, onde o médico Rieux é personagem de conduta edificante. Foi exemplo de jornalista responsável na divulgação dos conflitos que afligiram a sociedade no século XX. O papel da mídia segue muito importante no século XXI, com informações confiáveis, ou não, no campo da saúde e que merecem a nossa atenção, senão vejamos:

 “O narcisismo na medicina contemporânea”, do médico Álvaro Diaz Berenguer, publicado em Montevidéu, neste ano, analisa com propriedade a questão do “Erro médico”. Embora certo grau narcísico de conduta seja aceitável no profissional que lida com pacientes em dificuldades, demandando-lhe buscas incessantes de referências e boa dose de criatividade, foi identificado nos Estados Unidos que mais de 100 pessoas ao dia sofrem de erros médicos. Isto seria devido, na maioria das questões, não por omissão de conhecimentos técnico-científicos, mas porque o profissional teria tomado decisões sem haver considerado o paciente como outro ser, como se estivesse mais preocupado consigo próprio. Um aspecto preocupante não menor é que os profissionais se vejam como seres distintos, de capacidades sobre-humanas a lhes impedir de cometer erros, por uma necessidade narcisista de preservar a imagem de todo-poderoso. Descobrir os erros é descobrir a nós mesmos e isto exige reflexão e cultura apropriada.

Outro tema atual é “O tratamento dispensado ao doente terminal”, abordado por outro médico e escritor, na revista americana New Yorker, do mês passado. Procura passar a limpo os tratamentos dispensados para doentes graves, que são freqüentemente incuráveis e se está se tomando em conta a qualidade de vida do paciente. Também, neste caso, um narcisismo oculto pode estar incutido se não for perguntado, aos pacientes e familiares, se as medidas preconizadas são realmente aquelas que desejam tomar e bem discutidas as conseqüências.

Portanto, questões morais ou de costumes estão sempre em jogo na tomada de decisões. Não por outro motivo, Oscar Wilde escreveu no prefácio de “O retrato de Dorian Gray”, em tradução de Clarice Lispector: “Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo”. Há 100 anos, ele referia-se aos preconceitos quanto à sexualidade, pois a sua homossexualidade o levara à prisão e infortúnio.

A percepção do humano e as causas geradoras de mal estar e doença estão presentes em muitas obras artes: no quadro de Jan van Eyck, fundador da escola flamenga, é retratada a “União morganática”, do banqueiro Arnolfino e sua futura esposa de classe inferior. Esta forma especial de casamento, aceita na Idade Média – realizada cedo pela manhã, do alemão morgue, e sem a presença de convivas – permitia que a esposa e seus descendentes não tivessem direito a bens de herança. Na tela, destaca-se a soberba do noivo que mal dá a mão esquerda à noiva, ilustrando a situação tragicômica dos valores econômicos se sobrepondo aos humanos.

Também nas esculturas de Rodin, o artista deixa transparecer a incongruência da matéria burilada, que faz a beleza da obra e mantém a pedra tosca que lhe dá origem, na mesma peça. Em “A Danaíde”, os cabelos da ninfa se reúnem à água que deve continuamente abastecer a um tonel sem fundos, segundo a lenda, em castigo às 50 filhas de Danau que assassinaram na noite de núpcias a seus 50 maridos, filhos de Egito, para satisfazer a disputa de poder de seus pais, origem etimológica da palavra danação.

Portanto, como permanecer indiferentes quanto às diversas constatações de pseudo-ciência, pseudo-medicina e pseudo-moral antecipadas pelas artes?

Obrigado, Cyro Martins, pela ponte que nos auxiliaste a atravessar, levados pelas mãos, entre ciência e arte, bases frutíferas da medicina e o caminho ao humanismo médico.

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Veja apresentação em PPoint