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A REPRESENTAÇÃO FICCIONAL DO RIO GRANDE DO SUL NA OBRA DE CYRO MARTINS | Imprimir |  E-mail

Sandra Jatahy Pesavento - UFRGS- Prof. Titular /PPG- História



Representar é, sobretudo, estar no lugar de um outro, é a presentificação de uma ausência. Nesta medida, a representação é sempre uma atividade que envolve a imaginação criadora, em um processo que combina a exposição de um significante, portador de um significado, que remete a algo ou alguém, oculto.


Se formos pensar as possibilidades contidas na estratégia narrativa, encontramos este processo claramente revelado: o discurso dito literário ou ficcional, dá a ver, pela representação, uma seqüência encadeada de ações que se refere a uma realidade simulada ou criada pelo autor e que, por sua vez, é também reconstruída pela leitura.


Assim, nosso autor- Cyro Martins- na sua trilogia do " gaúcho a pé" nos fala de um certo Rio Grande, que sem dúvida tem como referente o Rio Grande que ele viveu e no qual talvez nós vivamos. Mas assim sendo, há liberdade literária do autor nos falar de uma criação ficcional, sem necessário reflexo com o Rio Grande dito "real". Em outras palavras, a representação ficcional do Rio Grande do Sul na obra de Cyro Martins não teria o estatuto da "verdade histórica", se nos prendermos ao conceito aristotélico de verdade, que estabelece a correspondência do discurso com a realidade.... Será?


Enquanto narrativa e, portanto, representação, o discurso literário cria uma coerência de sentido e fornece uma versão possível e plausível do real. A possibilidade de aceitação desta versão pelo leitor se dá por encadeamentos plausíveis e correspondências entre a narrativa e as lógicas de sentido que brotam das sensibilidades e experiências do leitor em cada época. Ou dito de outra forma, porque vão ao encontro do horizonte de expectativas e significados partilhados para o entendimento de outras épocas e realidades.


Voltando a Aristóteles, a narrativa literária (ou poética) fala do que poderia ter acontecido, e não do que aconteceu, domínio este reservado ao discurso histórico.


Não há pois, correspondência necessária e direta entre discurso literário e realidade, mas se insinua um entendimento plausível, exposto pela intuição fina do narrador, e que busca aceitação, por parte do leitor. Este, por sua vez, pode desdobrar os significados do discurso em novas lógicas de percepção.


Ora, a obra de Cyro revela, expõe e insinua realidades até então não percebidas. Cyro Martins fala de um Rio Grande e de um processo- o da proletarização do homem do campo- em um discurso " avant la lettre", que bate em cheio na visão histórica consolidada na época sobre o gaúcho.


Do Partenon Literário do século XIX ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul no século XX, progressivamente estrutura-se uma visão mítica do gaúcho, a partir da literatura e da poesia, e que vai ser endossada pelo discurso histórico.


O estereótipo deste padrão identitário de referência se consolida com a figura arquetípica regional, este gaúcho super-homem, " monarca das coxilhas", " centauro dos pampas". A esta visão grandiosa, atemporal, glamourizada, e de ampla aceitação, contrapõe-se um outro gaúcho, em correspondência com um outro Rio Grande, e que é dado a ver pela obra de Cyro; sem cavalo nem terra, desfaz-se a identidade do centauro e do monarca. Ao Rio Grande das glórias e das batalhas e ao gaúcho vencedor dos castelhanos, sentinela da fronteira, ergue-se- ou melhor curva-se...- outro, o andarilho do "corredor", o proletário do campo, expulso do latifúndio, em humilhante caminhada a pé que o leva até a cidade, onde um destino ingrato o espera. Trabalhador não especializado, lhe resta a pobreza na periferia urbana, o aviltamento, a degradação.


Qual Rio Grande, qual gaúcho é o verdadeiro? O do discurso histórico oficial ou o da narrativa literária, da visão alternativa? A positividade da primeira imagem leva à legitimação e ao endosso indiscriminado, a visão incômoda da segunda obriga a uma reflexão.


Não se trata de optar pela possível " verdade mais verdadeira" de uma sobre outra, mas de poder pensar que, por vezes, a literatura é uma forma de narrativa que, antes de outros discursos que se constróem sobre o real, leva mais longe a reflexão ou descortina em primeiro novos ângulos de olhar sobre o mundo.


Por outro lado, a narrativa ficcional de Cyro Martins, conduzindo a esta possibilidade alternativa de pensar a realidade de outra forma, pode fazer a própria história se questionar. Afinal, este Rio Grande do gaúcho a pé pode bem existir, não por exclusão do outro, mas a seu lado, ao mesmo tempo. No jogo identitário, este " outro" pode ser o " mesmo".


Além disso, pode alertar ao historiador que a literatura lhe serve- como traço, indício, registro, fonte, porque não?- não para encontrar fatos ou confirmar presenças de personagens, mas para poder dar a ver sensibilidades de um outro tempo, para possibilitar o entendimento de como os homens representavam a si próprios e ao mundo em uma determinada época.


São, a rigor, " insights" como este que fazem o legado literário de Cyro Martins manter-se vivo e em permanente diálogo com outros discursos e olhares que se possam ter sobre uma mesma realidade.


Indo mais além, podemos dizer que o Rio Grande e o gaúcho jamais foram os mesmos a partir da já consagrada trilogia do gaúcho a pé de Cyro Martins.


Sandra Jatahy Pesavento