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O lugar do não ser | Imprimir |  E-mail

Ricardo Guzmán Wolffer


Se as fronteiras tivessem música, seriam os gritos de agonia de milhares de bocas já mortas. Mortas na dor do não ser. Torcidas bocas enredadas nas placas de metal, nos fios de crostras feitos grades gotejantes. Bocas de crianças e de mulheres na busca de seus esposos e pais que se perderam. Se as fronteiras não fossem balas e abusos, se não fossem só o medo dos americanos de serem surpreendidos de novo, e de que o mundo se dê conta que não são invulneráveis, que não são a nova raça superior, esta que dita no planeta onde os suspeitos devem morrer; se minha fronteira norte não fosse essa linha de empalados servos que fogem da miséria mexicana, onde algumas dezenas de homens milionários continuam tirando proveito, desinteressados de suas presas; então, talvez, pudéssemos ver esta cultura que brota no choque das não culturas. As não culturas da superioridade do norte e a submissão do sul, da oferta mesquinha de lá e da necessidade inocultável de cá, acrescentada pelos canibais desenfreados. Nessa faixa tão longa como seus mortos, tão impenetrável como seu próprio significado, acontece o impossível: uma nova nação nasce todos os dias, alimentada pela necessidade de sobreviver, mesmo que nas dunas do deserto, dos homens que chegam de todas as partes, caminhando entre crânios, sem olhar para o passado.


Mas a dor continua, o sofrimento passa com botas cheias de bicos que atravessam tudo que está a seu alcance. Não há fronteira que não implique a dor do caminho. Pois aqueles que cruzam o Hades para ser novamente, seja por um trabalho, por uma família, ou pelo que for, mudam. Esse inferno é mutante: rio-deserto, torrente incessante de areias em ondas, muralhas de metal; e mais seus habitantes. Os espelhos que perambulam são os mais sanguinários: acreditam que assim não se verão mais como eles mesmos, que suas famílias sobreviverão ao ataque pacífico: e a serpente mestiça, que se levanta entre outras que deveriam ser de sua própria raça, prefere mastigar a própria cauda até desaparecer.


Nesse curral onde o país termina, em paredes de navalhas que mordem as mãos de ambos lados, a terra se divide. De cima, olham pensando em não entrar no país de morenos, seria suficiente levar os ouros de líquido negro ou pedras preciosas comestíveis. Segundo tua altura, o céu. Os nascidos na cerca só conhecem essas montanhas formadas pelo lixo do norte. Nos túneis que cruzam essas paragens sem sonhos, os tubos respiram, suam com histórias disfarçadas em paredes negras. Muitos gostariam de calá-las; dentro, os centopéias de tênis evitam as águas invisíveis, o cheiro do medo marca sua correria. O palpitar de uma morte inútil faz eco.  Em tais divisões de raça onde os homens se transformam em veados, a intolerância ulula, guia a sua matilha. A Terra Prometida lhes caiu por cima, ainda que tenham chegado ao oásis do qual nem sempre se regressa. E o êxodo continua. Entre cactus e nuvens de poeira, os fantasmas se perdem entre os veículos que transpõem as fronteiras, no deserto do imediato, com as palmas tostadas pela chuva inexistente, rezando sem sentido, com os braços abandonados por mosquitos metálicos, narizes de cristal agulhados, cobaias de laboratório para os químicos que ali acabarão com crianças e jovens. Meus fantasmas do deserto adicto ficaram com a parte do diabo e viajam com passagens para o infinito, amarrados a fios intermináveis num vai-vém errático: títeres de um Deus louco.


Talvez o desamparo não importasse, se apenas fossem os homens desesperados ao ver como seu país se torna pedregal afiado, surdos de medo, que, enlouquecidos pelas mentiras dos poucos sobreviventes entre milhares que antes foram cruzar a linha sombria, de repente transformada em mandíbulas estalantes, caem entre as nuvens da televisão ou desses filmes que nunca podem existir. Fogem do deserto feito por governantes vorazes e ricos cobiçosos. Talvez essa perda não fosse tão dura se fossem somente as mulheres que insistem em ser felizes, mas as crianças esquálidas, as crianças que se perdem no trajeto, essas jamais poderão ser resgatadas. Menos ainda diante dos olhares alheios dos seres alheios. Não os olhes, medusa de mil lentes negras. Esconde tua dentadura, estrangeiro, das crianças da terra. Observa teus espantalhos, ferrugem: poderia ser alguém querido que não voltasse.


São poucos os teimosos esperançosos, exíguos obstinados em tornar vivíveis as tumbas. Regozija-te por esses que, no páramo, encontraram uma raiz. Deixa, cidade, aqueles que se condoem de ver em que te transformaram os que fazem o desconsolo buscando reproduzir a estepe inerte, com solo de facas. Até as pedras foram violadas, beijadas com ácido para o parto das gemas. Com textura de cabeça aberta, as dunas pensam na água de ontem. As sombras no solo são pálpebras fechadas.


Esta fronteira poderia estar em qualquer lugar: entre as áfricas onde brancos e negros se tornam sombras; nas europas perdidas nas esquinas do tempo que volta; no sul do México e seus invasores do sul; em qualquer lugar onde deva passar primeiro um papel antes de um ser. Não as conheço todas, mas vi o horror dos humanos que já não o são e tais monstros se encontram em todas as partes.


Choveu sangue no deserto: os sapos que brotam são indescritíveis.

(traduzido do espanhol por Jussara H. Rodrigues)


- Ricardo Guzmán,
Juiz e Escritor (México), participou do II Fórum Fronteiras Culturais e Cultura Fronteiriça
realizando a palestra QUESTÕES JURÍDICAS E CULTURAIS NA FRONTEIRA DOS ESTADOS UNIDOS E MÉXICO