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Molduras entre Mundos * | Imprimir |  E-mail

Élvio Vargas


Primeira Parte

 

APOLINÁRIO PORTO ALEGRE

1844*1904+

 

SINETAS DOS EDUCANDÁRIOS FLUTUANTES

 

Quando tudo ainda era aminoácido em latentes memórias ancestrais, planejei minha vinda. Uma voz intensa de vigília e clarividência soprou-me as instruções. A única sensação que senti  foi de um vento frio, oriundo de meu novo gênesis: Terás um rosto de anêmicos presságios, olhos insones e torturados por visões que mais lembram pesadelos do que sonhos,  uma boca rasa e  descarnada para mastigar  palavras e os mais variados utensílios, que vagam logo  após  o inventário dos náufragos. Teu corpo responderá pela dimensão exata da página, pleno para capítulos e ágil para fugas. Nascerás numa cidade portuária.

Meu berço era comum, mas o que mais me impressionou era uma sineta. Anos mais tarde, mudamos de Rio Grande para Porto Alegre. Em 1861, fui cursar a Faculdade de Direito em São Paulo, mas devido ao falecimento do meu pai, voltei em 1863. Para sustentar a minha família, resolvi lecionar em casa. Meses mais tarde, fui contratado pela escola particular do médico Cyro José Pedrosa. Encorajado e com a sociedade do meu irmão Aquiles, fundei o Colégio Porto Alegre, em 1867.  Pelo fato das sinetas prosperarem, abri o colégio Rio-Grandense, em parceria com meu irmão Apeles.

No dia 18 de junho do ano de 1868, junto com republicanos e liberais, criamos a Sociedade Partenon Literário, com caráter romântico e regionalista. A Sociedade durou onze anos e publicava um periódico chamado “Revista Mensal”. Foi nesse período que as sinetas fizeram uma imortal e profunda amizade com minhas letras. Entretanto, não demorou muito e a diáspora literária vingou entre o grupo. Os dissidentes criaram “Murmúrios do Guaíba”. Durante essa travessia, eu escrevia sob os pseudônimos de Iriema ou Bocaccio, para os jornais A Reforma, A Democracia, A Federação, Gazeta de Porto Alegre, Jornal do Comércio, O Guarani e O Industrial. Com um ardor político e assinalado por este voto, abri as portas para o “Club Republicano”.

Tempos depois, desentendi-me com o grupo e criei o  jornal “União Nacional” com o apoio do Partido Liberal. No ano de 1889, após a proclamação da República no Brasil, uni-me a Silveira Martins,  que se opunha a Deodoro da Fonseca. Então, celebrou-se a sentença de Platão de que a história anda em círculos... Mergulhei no mesmo vórtice de Dante e Wamosy! Perdi minha filha América aos doze anos de idade e, após quatro meses,minha esposa Elisa. Estava inaugurado meu inferno astral !

Com a vitória de Júlio de Castilhos, em 1892, fui preso em 4 de julho e liberado dias depois. Através do jornal “A Reforma” estilhacei o governo com críticas políticas e ficou inafiançável minha estada em Porto Alegre. Fugi para Santa Catarina e depois Montevidéu. As perseguições federalistas de 1893 não me davam trégua. Retornei ao Rio Grande do Sul com a pacificação de 1895. Minha obra “O Vaqueano” editada em 1872 foi alvo de muitas críticas, pois debitaram-me um plágio do “O Gaúcho”   de José de Alencar:


Quem pode amar-te quadra sem sombras, cantos e flores? Período que espasma a vida e congela a flor das alegrias? Só quem não sente, alma embotada para as sensações brandas e suaves, que rodeiam a existência de uma gaza  transparente e rósea que se chama poesia!


 Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, em 1904, ouvi a sineta que anunciava o jantar. Sarças, sons e letras urdiam meu pálio póstumo. No meu último fluxo de consciência, enxerguei o alvoroço juvenil dos alunos, matriculados na rede dos meus educandários flutuantes... O último toque estava prestes a  ser executado, sinalizando que o recreio da vida findara.


                                                 Sinetas, sinavam, sonhos,

                                                 silenciando o sono só.

                                                 Sinos.

                                                 blém...blém...blém...2




SEGUNDA PARTE

 

ELVO CLEMENTE

1921*2007+

 

 

HÁBITO PARA DESVENDAR OS MISTÉRIOS DA LINGUAGEM


O sol de Osíris saiu de sua mastaba, atravessou o Mar Vermelho, atalhou pelo golfo do México e atingiu o Atlântico. Dali foi um passo até o estuário da Água Grande, nome dado ao Guaíba em tupi guarani. Na noite anterior, a balança das almas já tinha feito sua pesagem. Abro este capítulo com o Egito, pois o lado religioso de Elvo Clemente  reservava uma admiração pela “Terra das Pirâmides”, porque esta fora protagonista de passagens importantes no Antigo Testamento.

Nascido em Maróstica, Itália, em 1921, Antonio José Silvestre que, mais tarde, ao ingressar na Ordem Marista, passou a chamar-se Elvo Clemente, nasceu aos pés dos Alpes, não muito acima de Veneza, a cidade milagre das pontes, dos palácios e das maravilhosas basílicas que brotam do mar. Através de sua Ordem, veio para Porto Alegre. Era Doutor em Letras Clássicas, Professor Titular da Faculdade de Letras da PUCRS.


Ao olhar seus tamancos e, pela janela, admirar os vinhedos, as cerejeiras e castanheiras, prevaleceu o voto para ser um operário da cristandade. Pensou no vinho e no sangue,  no  cálice da Santa Ceia, no Horto das Oliveiras e reafirmou sua vocação. Seria um sacerdote. A família perderia um ajudante, e a igreja ganharia um padre beletrista. Escreveu centenas de ensaios sozinho e com parcerias, gerando inúmeros livros.

Citando Gládstone Chaves Melo – um mestre da Língua Portuguesa a quem ele admirava,   Elvo Clemente ressaltou:

Falar ou escrever bem é escolher com justeza as palavras, as construções, os ritmos. Para tanto, necessário é saber pensar e ter gosto: espirit de géométrie e espirit de finesse, conforme dizia Blaise Pascal. 


A poesia para Elvo Clemente era

... essa força misteriosa que é o suporte das grandes idéias, é o estranho encantamento que sustém o pedestal do sonho, razão suprema da existência e do viver. Pois o que é a vida sem o sonho, sem os véus diáfanos da fantasia, senão um grande logro em que os dias vão mirrando na dura realidade do ser e do não-ser?



Ainda em Maróstica, o pequeno Antonio olhava a bruma que ascendia dos pomares, um pouco antes do raiar do sol. Eram densas, frias e molhavam. Os minguados tamancos pareciam sapatos de gueixas; as roupas eram sobras dos tecidos que não serviam mais aos irmãos. Os arbustos de pequenas estaturas não passavam de orvalhados espectros aos olhos do menino que ele fora. As mágicas trilhas recebiam as filigranas do primeiro sol, guarnecidas pelos mínimos pássaros que esgravatavam a terra, na tentativa de ciscar o alimento para seus ninhos. Permanecer por ali, só tinha uma vantagem. Naquele lugar ninguém morreria, todos virariam pequenas árvores... Numa certa noite, Antônio Silvestre  acordou em sobressalto com o mesmo símbolo e a mesma frase que o Imperador Constantino acordara. O símbolo era a cruz e a frase: IN HOC SIGNO VENCIS... Sob este signo -  vencerás- , Elvo Clemente, no dia 19 de setembro de 2007, acordou no seu horário habitual, rezou e lembrou do seu sonho em Maróstica. O símbolo e a frase nunca o abandonaram e o conduziram para seu descanso eterno.**




TERCEIRA PARTE
(Atemporal)

 

TAPERA VIVA E O PASTOREIO DAS NUVENS



As pessoas fortes não são as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente

  Gilles Deleuze


E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...

Foi o tempo do manda-quem-pode!...  E foi o tempo  em que o gaúcho, o seu cavalo, o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos...

Simões Lopes Neto


A frase de Deleuze que abre este texto, veio como um  pala vestindo o peão e o lombo escorregadio do tordilho. Logo a seguir, os versos de Simões Lopes Neto traduzem,  através da poética, a mítica força do termo GAÚCHO!

Tudo começou em 1737, com a sedução pelas Seis Marias, que nasciam aqui na província de Entre Rios, às margens do Inhanduí, Ibicuí, Ibirapuitã e outros, estendo-se até as planícies verdejantes do seu desaguadouro no rio Uruguai. Cada cidade era uma cidade estado, nos mesmos moldes do período medievo. A estância, em épocas de guerra, virava fortaleza e cada peão era um soldado. A sesmaria tinha que ser guarnecida e, se possível, engrandecer os seus limites com os novos anexos dos castelhanos. Apaziguadas estas ambições por terras, tramados os tentos das pazes, a única diferença eram os alambrados e o sotaque de cada um. Bucolismo, alteridade, dores, paixões e todo o risco de buena ou mala suerte faziam parte do seu próprio jogo de tava, onde o destino lançava o osso. Só existiam a parteira, o Doutor e o padre para cuidá-los.  Todos percorriam léguas no lombo dos cavalos ou em algumas raras charretes. Não é o homem que está na fronteira, é a fronteira  que está no homem!...


Os grandes poetas, escritores e ensaístas  vêm pela mesma trilha, sulcada pela desolação, isolamento, insolúvel nos seus desfechos e irreparáveis nas suas tramas, onde a conciliação raramente é concedida. Aos compadritos de canto e afiando o cotillo  de Don Jacinto Chiclana, conforme diria Jorge Luiz Borges, vamos reavivar este assunto, com a candeia  iluminada de Angel Rama. Houve três comarcas: A primeira abrangia o Brasil, Argentina e o Uruguai. A segunda era a Caribenha e a terceira era a Andina. Onde estamos pertence à  Comarca Pampiana e por esta daremos uma campereada, pelas invernadas de lua e abandonos. De manhã bem cedito, encilhei o Mouro, que estava pastando perto das casas e saímos. As batidas pesadas das ferraduras do cavalo, sobre o pasto úmido pelo sereno, lembravam um bombo leguero, tocado em cerimônia fúnebre. O céu, que repontava ainda entre o acinzentado e o azul, era um lençol de nuvens, acobertando o sol debilitado pela orgia lunar. Na medida em que avançávamos, ele tornava-se forte e ocupava o seu lugar de astro rei. Onde o olhar cede, sepultado pela sua impotência de alcance, um cerro em forma de seio  aninha-se na mão do horizonte.


A maioria dos poetas e contistas que conheço, trabalha nessa linha do lírico descarnado pelo flagelo, pelo fogo expiatório que corrói os nichos da esperança... Assim é o pacto de honra de “Guapear com Frangos” de Sérgio Faraco, com o amigo vivo, que  leva o coração do amigo morto e o deposita no altar de uma velha igreja campeira.

A vingança de Adão Latorre  sobre os estupradores de sua filha, quando ele assiste tudo, amarrado num palanque de pau ferro,  no romance “Jabal Lubnan” de Alcy Cheuiche. Os sonetos infestados de um simbolismo tardio de Mário Quintana, onde a morte  protagoniza-os do começo ao fim...

Apunhalado pela claridade de janeiro, abro uma porteira que nos leva para a Banda Oriental e o que encontro?...  As chagas afetivas  de Alfonsina Del Mar, nos seus últimos dias de um ardente romance  com o contista Quiroga.

O conto fantástico de Juan Carlos Onetti, onde uma atriz que interpreta a persona principal  estava morta e contrata um jornalista para empresariá-la, pois queria sentir o que era “ Um Sonho Realizado”, peça que jamais estreara.

Sim, somos fronteiriços!... Carregamos em nosso DNA literário, a honra vencida de João Guedes, personagem imortal de Cyro Martins e as visões alucinógenas do Louco do Cati de Dyonélio Machado. Temos fascínio por armas brancas, pencas, mateadas e gaita ponto. No carteado, o que mais nos atiça  é um raminho de flor. Toda nossa épica e mítica história  está sintetizada no belo epigrama do meu saudoso amigo, mestre e poeta alegretense Lacy Osório:  Eis aí, senhores!... Bebam o suor cristalizado dos que não bebem em taças de cristais.

Não existe diferença em nossos motes, somente o idioma. Estes são os únicos alambrados que nos separam, pois ainda somos os assombrados peões morando na “Tapera Viva” e pastoreando sobre o  rebanho das nuvens...


*  Discurso proferido ao tomar posse na Academia Rio-Grandense de Letras em 15.04.2010, no Memorial do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.


**Biorafia romanceada de Elvo Clemente