FRONTEIRAS, FRONTEIRAS CULTURAIS E GLOBALIZAÇÃO | | Imprimir | |
Jacques Leenhardt - Filósofo e Sociólogo Nosso Encontro reúne pesquisadores pertencentes a vários países tendo uma fronteira comum em torno de um território sócio-cultural que transcende os mapas delimitando a Argentina, o Brasil e o Uruguai. O que caracteriza culturalmente esse território é a unidade simbólica do universo "gaúcho", tal como ele foi construído na prática e na literatura, enquanto, politicamente, é a conseqüência de três entidades geopolíticas, uma zona de conflitos entre três soberanias. Houve três, quando Espanha e Portugal se uniram contra as reduções jesuíticas, houve três depois que o Uruguai tornou-se um Estado, tanto quanto houve três quando foi o Paraguai que se converteu em objeto de cobiça. Os dicionários definem fronteira como "a extremidade de um reino, de uma província na qual os inimigos se deparam quando querem entrar". Entretanto, o aspecto estático de front não impede que, por um movimento vindo do interior do território, a fronteira se transforme em um front móvel. O objeto da geopolítica consiste precisamente nesse aspecto de que, face às definições estáticas dadas pela geografia, ela tenha por objeto o movimento permanente que agita essas linhas reputadas imóveis, sabendo que toda fronteira não é senão o resultado precário e passageiro das lutas engendradas pelas pulsões expansionistas. A teoria do "Lebensraum" tem justamente por característica principal conceitualizar essa pulsão. É preciso todavia notar que, quando os Estados, Reinos ou Províncias tratam de "contratar", quer dizer, de fixar as fronteiras por tratados mais que pelas armas, eles não intervêm em um território virgem. Práticas ancestrais foram já estabelecidas entre as populações que se tocam, constituíram-se modus vivendi que integram uma definição prática, senão geográfica, da fronteira, que pode então diferir significativamente daquela dos topógrafos. Tomemos o exemplo das faceries. Até o fim do século XVII existem, nos Pirineus, aquilo que se chama faceries, acordos entre comunidades de pastores espanhóis e franceses que, no espaço delimitado de um vale, autorizam a pastagem dos rebanhos, do levantar ao pôr-do-sol, de um lado e de outro da fronteira representada pelo regato que corre ao fundo. As faceries constituem pois um arranjo, resultante ele próprio de antigos conflitos locais remontando de muito longe no passado. Elas são estrangeiras à política dos Estados porque são submetidas à prática local do nomadismo. Quando os Reis da Espanha e da França quiseram estabelecer uma linha fixa e determinada com a ajuda de topógrafos de seus exércitos respectivos, estes entraram em conflito com os atores locais para lhes fazer, pela violência, aceitar o novo recorte (traçado), o qual privilegiava as exigências tecno-científicas dos topógrafos e dos cartógrafos militares. Desse modo, o Tratado dos Pirineus, em 1785, marca simbolicamente duas concepções radicalmente diferentes da linha de fronteiras. Poder-se-ia, então, concluir que a imposição das fronteiras científico-técnicas desenhadas por tratados põe termo às negociações locais em beneficio de uma regra abstrata. Assinala também a passagem de uma sociedade arcaica comunitária para uma sociedade moderna, dominada pelas exigências técnicas dos contratos escritos e dos limites precisamente desenhados. Ora, contrariamente às aparências, a linha de fronteira guarda, nesse novo contexto, todas as suas funções originais de transação, formuladas de agora em diante na linguagem da diplomacia. Os atores da transação não são mais as comunidades locais mas os Estados centralizados. E, evidentemente, os interesses dos últimos nem sempre coincidem com aqueles das comunidades; eles não são produto de um cotidiano imemorial cristalizado nas praticas culturais, mas de novos projetos geopolíticos abertos, cuja lógica responde aos objetivos estratégicos dos Estados, evoluindo com sua base técnica. A história da fronteira entre os diferentes atores do Rio da Prata abriga as mesmas questões: não somente "onde está a fronteira?", surgida dos combates em torno das Províncias Unidas do Prata (1825-1828), que conduzira à transformação da "Banda oriental" em um verdadeiro Estado: o Uruguai; "onde está a fronteira resultante da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870)?" Mas, sobretudo, como modos de vida e culturas se constróem ou sobrevivem apesar dos recortes que os atravessam, e constituem, à sua maneira, um espaço diferente daquele que tentam definir os Estados; um estado de cultura mais que dispositivos estatais de proteção. Se a fronteira é menos uma linha do que um espaço - como deixa entender a definição da palavra latina "limes" (daí limite), que em Ovídio ou Tito Lívio designa o caminho que separa dois campos, o espaço que permite não transgredir nenhuma das proibições acerca dos respectivos espaços, espaços de ajuntamento, articulação, como se viu no caso das "faceries" -, então a "limes", o limite, designa um intervalo, uma margem, uma borda sem apropriação, mas dotada de todos os valores políticos, simbólicos, religiosos que a mitologia grega reúne sob a égide de Hermes. Os limites, com efeito, foram sempre sagrados, tal como o domínio dos espíritos. Eles também foram sacralizados, como se houvesse dúvida quanto aos homens não serem capazes de lhes assegurar a permanência. Não se leva em conta, além disso, os templos construídos nos limites que se tornaram, no decorrer dos tempos, fortalezas protegendo a expansão territorial, servindo então de apoio ao espírito "fronteirista" dos heróis ao combate sobre as fronteiras. O deus que protege as fronteiras, Hermes, apresenta características bem particulares. Deus móvel, múltiplo, rompe-muralhas, guardião das portas, bi ou quadricéfalas quando ele é representado nas encruzilhadas; deus dos gonzos das portas, mestre das entradas e guia dos viajantes, testemunha dos acordos, dos contratos, das trevas e dos juramentos. Hermes é também um embrulhador de pistas e o condutor das almas aos Infernos. Hermes é o deus das passagens, da ultrapassagem dos limites mesmo quando simboliza a permanência delas. É preciso desde então examinar em que consiste esse espaço dos limites, ou, mais precisamente, a articulação desses fronts. Por paradoxal que pareça, eu diria que o espaço dos confins é, exemplarmente, essa terra dos gaúchos, terra por definição e para sua infelicidade, inexoravelmente sem limites. O pampa é a extensão mesma, a "lhanura sem limites", marcada depois de Sarmiento sob o signo maléfico do espaço sem bordas. Esta paisagem ilimitada constitui um dos topos mais recorrente da história da literatura, na Argentina, no Uruguai como no Rio Grande do Sul brasileiro. Ele foi o tema recorrente da prosa regionalista. A figura do "gaúcho" está ligada a esse ilimitado. O território, mais profundamente ainda, a alma do "gaúcho" é uma paisagem na qual, só, a silhueta do homem a cavalo estabelece um ponto assinalado na imensidão. Mas a questão que se põe do ponto de vista literário, dos lados das três fronteiras, é de saber se essa paisagem simbólica reenvia a uma verdade de experiência local, da qual só uma literatura regionalista saberá dar conta,ou se, como Garcia Márquez fez com Macondo ou Rulfo, com Comala, a verdade desse espaço ilimitado de fronteiras móveis pode adquirir um valor universal. Ora, o espaço da fronteira, do "limes" traz em si uma terceira dimensão, um plano em descompasso que permite apreender o território a partir de um ponto de vista tanto externo como interno. A fronteira que eu tentei mostrar retomando a definição de "limes" como caminho entre dois territórios e não pertencendo nem a um nem a outro, mas aos dois, abre a perspectiva de um terceiro olhar, nem perdido na singularidade do lugar, na cor local, no "genius loci", nem perdido nas brumas da abstração universalizante. Quando Jorge Luis Borges tenta figurar a subversão de todos os lugares e de todas as linguagens inventando um universo desconhecido, Tlon, quando descreve esse lugar paradoxal através das suas paisagens e de sua metafísica, ele diz uma só coisa do mensageiro pelo qual a cultura de Tlon foi conhecida: "ninguém sabia nada do mensageiro morto senão que ele vinha da fronteira". Notar-se-á, para os desenvolvimentos a vir, que a língua desse planeta cultural utópico inventado por Borges apresenta a característica singular de não pensar o mundo através de substantivos, e portanto de essências, mas por meio de verbos somente. Ações sem suporte essencial, fazer sem metafísica, tal é a estrutura do universo, do Tertius Orbis de Tlon. E eis-nos de volta às bordas, ao "limes" , às "faceries", às frontarias (essa poderia ser uma tradução da palavra "faceries"), palavras todas que remetem tão bem ao jogo do espelho que engendra o texto borgesiano sobre Tlon, todos os espaços sem substâncias mas cuja existência depende de um fazer ancorado em uma cultura: pastagens de ovelhas ou vacas nos campos limítrofes. O "limes" é esse espaço utópico, inteiramente definido por uma prática e não por uma lei. Falando de Alcides Maya, Cyro Martins nota em seu ensaio "Visão crítica do regionalismo"(1944): "Com efeito, o pampa estava sempre presente em todas as suas horas, mesmo falando de Byron. Circundava-lhe a fronte imponente um halo tecido de vibração das distâncias e do adejo das evocações." Alcides Maya é, para Cyro Martins, o exemplo típico do escritor regionalista que, na sua prosa colorida, constrói o retrato heróico de um gaúcho macho, batalhando nos limites de suas forças e nas fronteiras de seus territórios. Literatura eufórica, diz ele: " O nosso regionalismo nada pedia, bastava-lhe o facho da tradição, empapado de pitoresco e luzindo façanhas. Contentava-se com exibi-lo como uma floração arrogante de vitalidade. Caracteriza-o um desejo machista de expansão e domínio." Uma outra coisa é aquilo que ele chama "o localismo". Se o regionalismo é eufórico, o localismo será "disfórico", mesmo se Cyro Martins não utiliza exatamente esse termo. O regionalismo é uma literatura do "fazer", da ação brilhante levada a efeito por um indivíduo instalado firme nas suas botas, o localismo é uma literatura "sem adjetivos" sem tipos, sem cavalos, sem espaços infinitos. Será que, no espírito de Cyro Martins, deve se tratar de uma literatura objetal ou objetiva, por oposição a uma literatura do sujeito maiúsculo e heróico? Sem dúvidas. Mas o crítico assinala que esse retorno do mito eufórico deve-se à transformação das condições concretas da vida do gaúcho. Não se trata somente de uma escolha literária, mas de uma análise da realidade que implica técnicas de escrita diferentes. Cyro Martins explica essa transformação pelas modificações que afetavam o trabalho do gaúcho e, em particular, o fato de que ele não participa mais diretamente do conjunto do processo de comercialização dos produtos de seu trabalho. Os centros de decisão da economia agropecuária estão de agora em diante fora. Esta explicação sociológica tem todo seu valor, mas decorre provavelmente de um fato conexo: o gaúcho tradicional era às vezes um tropeiro e um militar. O gaúcho contemporâneo não é senão um guardião do gado, sem responsabilidade sobre a fronteira, um vaqueiro circunscrito no seu espaço. O sentido que convém de agora em diante dar à noção de fronteira mudou. Se, pelo regionalismo, ela advém do primeiro sentido que dão os dicionários, aquele de limite de um reino ou de um Estado, o segundo desses sentidos, ilustrado pelas "faceries", sublinha a inexistência desse limite, na vivência das populações que a margeiam. No espaço do pampa, tal como ele foi por muito tempo vivido, a fronteira era um front móvel do qual cada gaúcho era o guardião responsável. Desde que a questão dos limites não lhe pertença mais, quando ela advém do poder afastado do Estado, que não tem o que fazer com a vivência local, o gaúcho perdeu completamente sua razão de ser como defensor dos limites. Ele não é senão um pobre vaqueiro, um ser desvalorizado e contraditório : um "gaúcho a pé" . Mas traz ainda no fundo do seu coração, a canção antiga atualizada pela função ideológica do regionalismo: "Eu sou filho da Fronteira/Do meu amado Rio Grande/E em qualquer parte que ande/Carrego no coração/A saudade do meu pago/Cuja imagem sempre trago/Na cuia do chimarrão." Função essa que Martins denuncia. Voltando decididamente as costas às ilusões recolhidas pelo regionalistas, Cyro Martins abre a via de uma ultrapassagem saudável. Ele não chega, entretanto, a se desfazer da idéia de que a solução literária para o espaço do pampa possa se emancipar dos traços particulares da psicologia do gaúcho pauperizado. Ora, esta psicologia é primária, sublinha Martins: "material fácil para reportagens. Para a criação literária, porém, é necessário que tenhamos vivências da trama íntima daquela desolada paisagem humana." . A solução empática permanece hipotecada pelo fato mesmo da primitiva estrutura mental dos gaúchos pauperizados, se permanecermos ligados a uma perspectiva literária característica do realismo clássico. Poder-se-ia, entretanto, abrir uma perspectiva , como a percebida em obra como a de Juan Saer, que trata de surpreender, nos confins dos territórios, uma chance inédita de repensar as territorialidades, o enraizamento, a tradição e a cultura que lhe são ligadas. A época da globalização, na qual o gaúcho e nós mesmos entramos por portas diferentes mas para nos reencontrarmos todos em face de uma mesma catástrofe das fronteiras, implica uma reflexão inédita sobre a ancoragem no passado (espécie de territorialização ideológica) e a ancoragem no futuro (espécie de utopia ideológica). O pensamento do território, de seus encerramentos mentais tanto quando físicos, ao qual os exercícios espirituais de Borges nos introduziu, deve hoje ser objeto de uma reavaliação. Parece que os instrumentos literários aos quais se referia Cyro Martins não constituem senão uma cena muito ligeira face à borrasca sobre as planícies do pampa e da mundialização. Eu não sei se a invocação do terceiro espaço, aquele do "limes" pode ultrapassar o desejo piedoso ou a conjuração. Mas me parece que nossa territorialidade e nossa temporalidade contemporâneas implicam levar a sério as complexidades já colocadas sob a égide de Hermes . (texto apresentado no 1º Encontro Fronteiras Culturais e transcrito na Revista de Literatura CULT/45. São Paulo, abril de 2001) Jacques Leenhardt |