CRÔNICA PARA HUGO | | Imprimir | |
Fronteiras Culturais - Outras Fronteiras |
- um tempo em que ser comunista bastava para abrir as portas da frente e dos fundos da casa
A greve no Frigorífico Armour arrebentou em abril de 1949. A polarização entre capital e trabalho extrapolava os limites da negociação, e alguns dos principais líderes do movimento foram presos. Na edição de segunda-feira, 4 de abril, o jornal O Republicano, porta-voz da UDN local, publicava:
Era voz corrente na cidade de que os líderes grevistas presos seriam levados para Porto Alegre. Na tensão pulsante daquelas horas, os companheiros remanescentes, entre eles Lucio Soares Neto, secretário do partido, e Hugo Nekesaurt, braço direito da militância, tramavam a reação. Escondidos em um fundo de quintal de uma modesta casa nas cercanias no frigorífico, junto a um chiqueiro de porcos, varavam a noite despistando a polícia, correndo risco de vida. Hugo recorda: “Estávamos nos fundos de uma casa de gente requetepobre. E de madrugada é que se deu o caos. As mulheres dos companheiros presos foram exigir, chorando, uma solução. Se dizia que iam ser levados para Porto Alegre no trem que saía de manhã e ninguém sabia o que podia acontecer”.
Pressionado, Lucio não resistiu ao apelo desconcertante das companheiras, angustiadas pela incerteza da luta e o que poderia acontecer aos seus maridos. De súbito, determinou a Hugo mais uma das missões quase suicidas, que já faziam parte do cotidiano da luta. É o velho militante comunista, sobrevivente daquelas décadas radicalizadas, que rememora:
Hugo não desertou. Esperou o trem, e conforme o combinado com Lucio, ofereceu-se ao sacrifício pela liberdade dos companheiros. Nem que fosse à bala iria tirar dali Felício, Aladim, Horacílio, Pedro e Adair. Também deviam estar no trem o Juvelino, o Nazário, o Joventino, o Antônio, o Ernesto e o Toríbio. Com a arma em punho, dissimulada no bolso, percorreu os vagões em intermináveis minutos. Mais uma vez, a sorte o acompanhou. O conflito fora adiado. Os companheiros ficaram detidos na delegacia, de onde só sairiam depois de sumariamente demitidos do frigorífico.
Hugo desceu em Palomas e empreendeu uma arriscada caminhada rumo ao centro do conflito, novamente. Enquanto percorria os quilômetros que o separavam da cidade, da fábrica e dos grevistas, pensava na peculiaridade da luta. Mal poderia supor que pouco mais de um ano depois veria quatro de seus companheiros chacinados em frente ao Parque Internacional. Quem observasse aquele homem caminhando pelos trilhos; obstinado, cansado, envolvido até a raiz na luta social, não poderia supor que a luz daquela manhã outonal iluminava um idealista que pouco se importava com as privações que o combate impunha. Como bem notou o historiador Jorge Ferreira, para os comunistas amargurado era aquele que não sabia as origens de seu sofrimento, infeliz era o operário alienado que desconhecia as razões de sua miséria, sacrificado era o camponês que nascia e morria faminto acreditando na vontade de Deus; sofrido era o pequeno-burguês em sua vã corrida para alcançar os capitalistas. Para um autêntico revolucionário, o sofrimento era um sentimento perturbador tão somente para aquele que ignorava as matrizes de suas dores. Para Hugo, ser revolucionário era viver a plenitude da moral comunista, que preconizava a destruição de uma ordem social desigual e farta de valores injustos. Foi assim que viveu intensamente as transformações políticas que sacudiram o século 20, refletidas nas batalhas operárias de uma fronteira desigual, marcada pela luta de classes. Um tempo em que ser comunista bastava para abrir as portas da frente e dos fundos da casa. Virtude que não se questionava. Quando guri, morador das cercanias da charqueada São Paulo, conheceu Santos Soares, secretário do partido e legítimo líder do operariado santanense. Experimentou a grande transformação que o fez comunista de corpo e alma quando um vizinho o fez ler uma carta em que Olga Benario Prestes relatava a vida na prisão nazista. As agruras vividas pela pequenina filha de Olga e do líder Luis Carlos Prestes comoveram o jovem aprendiz de pedreiro e despertam para sempre um senso de justiça social que nunca mais abandonaria. Ao mesmo tempo, a guerra civil na Espanha incendiava os corações operários, era preciso tomar uma posição, mudar o mundo enquanto era tempo!
Mais tarde, sua ligação com Lucio Soares Neto, que assumira a secretaria do partido no final dos anos 40, seria de altos e baixos. Os unia uma obsessão pela luta operária, pela justiça social, o afronte aos poderosos da oligarquia local e aos gringos do frigorífico. Os afastava, no entanto, uma classe distinta. Hugo questionava alguns valores que creditava a origem pequeno burguesa de Lúcio, e isso constantemente os levava a posições conflitantes. Porém, como soldado da causa, cumpria as ordens que vinham do líder partidário, embora muitas vezes desconfiasse de suas reais intenções: “Me colocava em missões que seguramente eu morreria, mas não morri nunca!”. Em alguns momentos, a paranóia que rondava a luta fazia Hugo crer que Lúcio o achava um elemento da polícia, plantado no partido. Só podia ser isso. “Me perseguiu porque achava que eu estava vendido para a polícia, que eu não podia ser tão inteligente assim!”. Entre Lúcio e Santos Soares, Hugo via quilômetros de distância. Para ele, um era o legítimo “obrero”, o outro “um burguês que atuava como caudilho”. Ainda assim, o unia a Lucio o cotidiano do partido e a paixão revolucionária, que alimentava uma insólita e fiel amizade. Admirava a trajetória do brilhante advogado em defesa dos pobres e o passado que o ligava a Aliança Nacional Libertadora, o exílio no Estado Novo, e a rejeição em comum que nutriam por Getúlio Vargas.
Não que Hugo fosse frontalmente contra os pequenos burgueses ou os caudilhos. Admirava Don Pedro Irigoyen, o dono do saladeiro, que soube ludibriar os gringos que pensavam ter comprado o terreno do Armour com direito aos eucaliptos da avenida, semeados por ele. Lembra com indisfarçável orgulho da frase proferida tantas vezes por Don Pedro: “Mientras exista Pedro Irigoyen, y sea dueño del saladero, nunca van a ver un milico en el portón”. A hombridade da luta política também acendia a admiração ao caudilho maior, Flores da Cunha. “Gosto do Flores, apesar do Flores ser da UDN , porque era um homem romântico, humano, chorava por qualquer coisa. E era o valente número um, não?”
A relação com o Frigorífico passou da admiração para uma crescente consciência de classe. Quando olha para trás e revê a luta que teve como palco a fronteira, Hugo reflete sobre a fábrica, com os prós e contras que o desenvolvimento capitalista impôs naquele momento: Isso eu penso até hoje, quando perco o sono. É a evolução do mundo, claro, eram uns ladrões, sempre foram uns ladrões, mas teve uma etapa em que eles ajudaram os povos, verdade? Porque quer indústria melhor do que um frigorífico para trabalhar? As pessoas aqui de Santana trabalhavam em campanha, grátis, por comida. Faziam muro de pedra, quando não havia alambrado. E eu faço uma comparação do Frigorífico com um filho. Você cria o seu filho, ajuda, mas ele cresce e casa e você deixa de ajudar. Ele já é livre. E com os capitalistas sucede a mesma coisa, a princípio é encantador trabalhar em um frigorífico, mas depois um se dá conta de que é roubado.
Ás vésperas do verão de 2011, Hugo mantém a rotina do mate ao final da tarde, ao lado da imprescindível companheira de toda a vida. Torce pela continuidade do governo petista e mantém suas convicções comunistas inalteradas, embora aquela Santana industrializada e fervente já tenha passado. Lembra dos companheiros que já se foram e vê a noite se aproximar lentamente da fronteira.
---------------------- * Marlon Aseff (marlon.aseff@gmail.com) é jornalista e mestre em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de Retratos do Exílio – solidariedade e resistência na fronteira (Edunisc, 2009).
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