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Pagos, passagens, incertezas: o drama da fronteira  E-mail
Fronteiras Culturais - Artigos

 

Maria Helena Martins

"E cada um tinha que ser um rei pequeno...
e agüentar-se com as balas, as lunares e os
chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!...
E foi o tempo em que o gaúcho,
o seu cavalo e o seu facão, sozinhos,
conquistaram e defenderam estes pagos... "

Simões Lopes Neto, "Contrabandista"
Contos Gauchescos e Lendas do Sul

A situação geopolítica do território sulino constituiu-se num dos fatores decisivos para diferenciar seu desenvolvimento social, econômico e cultural do restante do país. Interessava à metrópole como potencial produtivo e, mais tarde, como espaço estratégico, limítrofe com o Prata. Mas permaneceu espécie de "terra de ninguém" até 1737, quando o Brigadeiro Silva Pais fundou o Rio Grande de São Pedro. Esse ato, contudo, não impediu a persistência de lutas e desacertos, tampouco arrefeceu o sentimento de território periférico. O Rio Grande forjou-se, pois, a partir da necessidade de afirmação, em face do poder central brasileiro e da proximidade ora ameaçadora ora atraente de terras castelhanas. Estas, aliás, em condições assemelhadas às nossas.

 

Ao rechaço da Coroa, se acrescenta a vivência do "drama da fronteira", envolvendo o Rio Grande e as regiões lindeiras do Uruguai e da Argentina. Periferia e fronteira estão fadadas a compartilhar desditas, desvantagens. Mas não só isso. Devido à condição de marginalidade, podem usufruir de uma liberdade impossível para populações próximas da "lei e da ordem". Dessa conjunção emerge uma ideologia vigorosa, guiada pela intuição popular, de luta por valores liberais e libertários. Assim, os habitantes dessas terras identificaram-se e passaram a ser vistos como contestadores, com tendências autonomistas. "La dura vida impuso a los gauchos la obligación de ser valientes", diz Jorge Luis Borges. O poeta corrobora a tradição oral, que firma a imagem heróica do gaúcho, o qual, só no século XIX, passa a tema de interesse literário. Um fenômeno comum tanto entre sul-rio-grandenses como entre uruguaios e argentinos. Já se indicia aí que fronteiras culturais e de linguagem resistem às delimitações geopolíticas bem mais do que o estabelecido em tratados. Mesclam-se em suas trilhas ambivalências e ambigüidades de ordem social, lingüística, cultural.

 

Gaúchos e gauchos atravessaram o tempo compartilhando aspectos da literatura gauchesca, assim como habilidades e vícios; negócios, amores e inimizades; temores, costumes, vestuário, crenças, lendas, tradições. Apesar de definições espaciais às vezes indistintas, semoventes, parece haver um tácito acordo quanto a cada lado a seu modo, em cada um desses aspectos, sem que uma cultura subjugue outra; ao contrário, elas se somam, contrastam, se "entreveram".

 

A vivência do "drama da fronteira" implica, pois, complexidades que subsistem em várias facetas da vida no campo e nas cidades. Mas é nestas que a dramaticidade tem uma dinâmica talvez insuspeitada pelo historiador Othelo Rosa, quando usou a expressão, referindo-se à formação do Rio Grande. A questão das fronteiras parece hoje mais intrincada devido a contingências culturais, sociais e econômicas do que causadas por problemas de identidade nacional.Aliás, não se notam dúvidas quanto à sua nacionalidade, por parte dos habitantes dessas cidades. Há, porém, fortes indícios de que peculiaridades afloram das/nas práticas culturais da região, aparentemente, pouco percebidas e valorizadas por sua população. Certos costumes, o falar, o trânsito entre o lado de cá e o de lá, a arquitetura, o cotidiano, as relações, o trabalho, o lazer são permeados por um modo de ser fronteiriço, algo que foge a delimitações. O convívio das pessoas parece fluido e fácil - natural. Essa transparência, no entanto, talvez não corresponda a conhecimento mais amplo dos significados que esse contexto gera.

 

Há menos de dois séculos, antepassados de habitantes dessas cidades literalmente batalhavam pela sobrevivência, em espaço sem cercas, na Campanha, no Pampa, num "manda -quem -pode", pouco importando se castelhano ou brasileiro. Mais tarde, passaram a lutar no e pelo naco de terra que lhes concediam os donos dela. Depois, uns poucos conseguiram conquistar, a laço e no lombo do cavalo, sua parte nas sesmarias; muitos, porém, enxotados do campo, foram constituir as "coroas de miséria" das vilas fronteiriças, onde alguns resistiram, uns foram minguando, outros se fizeram e assim construíram as cidades, pequenas cidades.

 

Apesar dessa notável mudança - ou talvez até por isso -, a imagem do gaúcho "centauro dos pampas" continua fascinando, alimentando o imaginário, tanto de quem teve quanto de quem não teve vivência campeira. Sejam despossuídos, remediados ou abonados. Nobreza e valentia permanecem seus atributos, decantados por meio de um aparato institucionalizado nos Centros de Tradições Gaúchas, desde a década de 50, que se alonga no tempo, se espalha pelo mundo. Afinal, mitos, lendas e façanhas são adereço da História, matéria de Poesia, desafio à reflexão.

 

Em que medida essa trajetória pertence à história pessoal e familiar dos moradores atuais dessas cidades? Como as marcas históricas se manifestam hoje ? Essa população urbana seria menos afoita que os campeiros da primeira hora, na luta pela obtenção de direitos econômicos, sociais, políticos, pela sua cidadania? Como se processaram os entrecruzamentos de tantas componentes contextuais e até que ponto o "drama da fronteira" foi superado, transformando prejuízos em vantagens e possibilidades a serem desenvolvidas? Que relações significativas os leitores estabelecem com a literatura e a história que tomou o cenário e a gente da Campanha ou de sua própria cidade como referenciais? As representações ficcionais do gaúcho - como o "monarca das coxilhas" e seu oposto, o "gaúcho a pé" - são incorporadas pelo imaginário, se mesclam à realidade, impregnam mentalidades, interferem na linguagem, nos costumes, nas relações sociais, nos procedimentos dos cidadãos?

 

Essas são algumas das questões que inspiraram a concepção do projeto Fronteiras Culturais e que vão sendo postas em campo. Talvez até para serem refeitas, redirecionadas mais do que respondidas, mas certamente para favorecerem nosso conhecimento, para avivarem possibilidades de transformação.

 

Maria Helena Martins é Coordenadora do Projeto
Fronteiras Culturais: Brasil - Uruguai - Argentina
e-mail: mhmartins@celpcyro.org.br