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A SARANDI E OUTRAS FRONTEIRAS* | Imprimir |  E-mail

Flávio Wolf de Aguiar**


Como todo livro escrito a muitas mãos, este também termina sendo um cruzamento de vários olhares que, depois do encontro, se dispersam em suas próprias direções. Mas o encontro não é fugaz, constituindo um espaço de diálogo e reflexão que permanece na memória como de estatuto próprio e impulsionador de uma continuidade, além de ponto de chegada de uma trajetória comum.

A base do livro foi o Simpósio Internacional Fronteiras Culturais no Cone Sul, realizado pelo Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins (Celpcyro), de Porto Alegre, e pela Cátedra de Literatura e Cultura Brasileira do Instituto Latino-americano (LAI) da Universidade Livre de Berlim, na capital gaúcha, em dezembro de 2004.

Este encontro fez e faz parte de uma série, fruto de diferentes projetos de pesquisa animados por estas duas instituições, mas com ramificações na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de S. Paulo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Universidade de Buenos Aires, na Universidade da República, de Montevidéu, além de outras instituições similares, além de instituições educacionais da fronteira gaúcha e “gáucha”. Também começaram a participar desses encontros pesquisadores de universidades da região fronteiriça entre Brasil, Paraguai e Bolívia, mais ao norte.

O livro tem três partes distintas. Na primeira, predominam os estudos literários e artísticos afins. Na segunda, estudos de natureza lingüística, sociológica, antropológica e de comunicações, que invadem também os campos da ciência política e da economia. A terceira parte é constituída por uma entrevista do professor Marco Aurélio Garcia, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Assessor Especial de Política Externa da Presidência da República, dada em fevereiro de 2005.

“Sarandi”, palavra que dá nome a esta resenha, é uma rua fronteiriça, entre as municipalidades de Santana do Livramento e Rivera, que na verdade constituem uma única cidade, binacional e multilíngüe, uma vez que ali se falam o português, o espanhol e uma terceira língua própria, simbiose das duas matrizes que não perdem sua identidade. Ela está também no título da apresentação (“Nem tudo é amor na Sarandi”), assinada pelas organizadoras, Maria Helena Martins, do Celpcyro, e Lígia Chiappini, hoje professora do LAI, antes de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de S. Paulo, com que ainda mantém vínculos em nível de pesquisa e pós-graduação.

O título da apresentação sugere que, nos encontros fronteiriços e supra-nacionais cada vez mais amplos num “mundo cada vez mais mundializado”, nem tudo é passagem tranqüila, havendo também atritos, conflitos e confrontos de interesses e diferenças que precisam ser reconhecidos antes de mais nada. Assim se dá, aponta a introdução, no espaço do Mercosul, foco principal em torno de que gravita a maioria dos ensaios apresentados no livro.

A obra parte da posição vantajosa de situar as balizas de sua exploração, em primeiro lugar, no plano da cultura. A parte literária, logo a primeira, dá profundidade histórica e enraizamento mais profundo do que apenas uma questão de trocas comerciais, financiamentos mútuos, mercados a construir e a conquistar, políticas a administrar, cujos jargões predominam hoje nas análises que flutuam na maior parte da mídia, sufocando os demais aspectos e deformando a percepção.

Não cabe neste curto espaço fazer considerações detalhadas sobre cada um dos ensaios. Aponto que sobressaem entre os vários importantíssimos apresentados, os vultos de Simões Lopes Neto, Javier de Viana e Jorge Luis Borges, como uma trinca trinacional (respectivamente Brasil, Uruguai e Argentina) que compõe uma “consciência da margem”, ou melhor, das várias margens que compõem este universo fronteiriço. Margens entre os países e seu fluxo regular de trocas ou irregular, de contrabando; margens entre as cidades multifacetadas e o pampa, variado, mas sempre opondo a elas a presença/lembrança de uma natureza percebida ao mesmo tempo como bruta, a domar, e como fonte de identidades mutantes e cambiáveis (o índio, o gaudério, o gaúcho, o imigrante, o escravo, entre outras) que se acumulam na memória coletiva. Margens ainda entre a civilização e a barbárie, entre a América e a Europa, entre o passado e o futuro.

Os estudos da segunda parte ressaltam a percepção do movimento como tema central. As visões percorrem as línguas da região, diferentes momentos da mídia e de suas linguagens, os movimentos imigratórios, migratórios e emigratórios das mais variadas espécies, de tal modo que hoje em dia não é mais possível dizer, por exemplo, que “o gaúcho” é o “habitante de uma região ou estado específico”. Num momento em que há churrascarias de inspiração brasileira em Bogotá, Dallas, Bremen e Pequim, esse “gaúcho” - que continua existindo - é uma referência mundializada.

Até pouco tempo atrás, por exemplo, uma referência principal dos latino-americanos em Berlim era um restaurante chamado de La Estância, onde se encontrava de tudo além de boa carne grelhada ao estilo pampiano, cujo dono era um simpaticíssimo japonês, o Sr. Senda. Ele chegou criança ao Rio Grande do Sul, aí se radicou, depois foi para Berlim, onde abriu o estabelecimento que chegou a ficar famoso desde o tempo dos exílios provocados pelas ditaduras militares (e o Sr. Senda ajudou vários exilados). Era uma Berlim ainda ocupada pelas tropas do pós-guerra, na Alemanha dividida, depois tomada vertiginosamente pela tempestade da re-unificação. Na fala peculiar do Sr. Senda (pronuncia-se Zenda), que se dizia (e de pleno direito) tão gaúcho quanto o autor destas linhas, ajuntavam-se línguas de três continentes, ou mais, se levarmos em conta os substratos africanos, fortes na língua portuguesa do Brasil, pelo menos.

Este “caso” berlinense é significativo para descortinar a tese que subjaz em todo o livro, garantindo uma percepção de unidade em meio a assuntos muito vastos e díspares. Essa tese é a de que as fronteiras, neste “mundo mundializado”, não são mais linhas divisórias entre alteridades que se reconhecem ou não, se agridem ou se toleram. São elas mesmas “regiões específicas”, com estatutos próprios. Mobilizam não apenas os povos nacionais originários que ali se medem, se irmanam ou entram em desavença. Como regiões lábeis, atraem novos “estrangeiros”, os “gringos” de antanho, que se especializavam muitas vezes no contrabando lucrativo, e hoje uma pequena ou grande multidão variegada que vem do mundo inteiro e por ele vai. Ainda mais do que ser apenas um espaço geográfico, uma fronteira torna-se também um espaço espiritual específico, que tem uma cultura que lhe é própria e característica, sendo assim apropriada pelas culturas que lhe servem de referência e lhe deram origem. Além disso, as fronteiras novas e antigas espalham-se por todos os espaços: cidades, centros, periferias, campos tradicionais hoje rasgados por transformações tecnológicas e sociais de grande monta, como nos casos tão opostos como “conviventes”, apesar das rusgas por vezes demasiado violentas, como os da agricultura familiar e do “agrobusiness”.

Compõem o livro - ao final da parte literária - dois interessantes ensaios, um sobre os narradores orais que subsistem no pampa tri-nacional, e outro sobre pesquisa e propostas de danças e músicas a partir das “técnicas corporais do gaúcho”, como as utilizadas na tosquia da lã dos carneiros. E ao final do livro, no apêndice, o assessor Marco Aurélio Garcia define uma moldura de política externa brasileira para a região chamada de “Cone Sul” desde os tempos das ditaduras militares, incluindo em sua fala a América do Sul. Uma política que, se assentada com raízes permanentes (sabemos que infelizmente muitas vezes no Brasil mudam-se os governos, mudam-se as vontades estratégicas), significa o encontro da maturidade com respeito à região, baseada no mútuo reconhecimento inclusive de diferenças e contenciosos, na consolidação de infra-estrutura e políticas energéticas, e na mobilização da “energia cultural” de que dispomos nós, os latino-americanos.


* Resenha de Cone sul: fluxos, representações e percepções. Chiappini, Lígia; Martins, Maria Helena (orgs.). São Paulo: Hucitec, 2006. 351 págs. Originalmente publicada no site Terra Magazine

**Flávio Wolf de Aguiar - professor, crítico literário , escritor e jornalista