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A AMÉRICA LATINA NÃO EXISTE | Imprimir |  E-mail

Flávio Aguiar


Então é necessário inventá-la. Antes de prosseguir, qualifiquemos estas frases. Quando digo que a América Latina não existe, quero dizer que ela é, na verdade, um projeto, um por-fazer. Essa América Latina por fazer é, antes de tudo, um projeto cultural, e seu embrião é uma possível rede de trabalho intelectual que distinga raízes comuns e que estabeleça pontes de relação entre seus e com outros povos.


Não desprezo o campo econômico: é necessário consolidar e ampliar o Mercosul e evitar a dolarização do continente. Também não desprezo a questão política: recém saída de um período marcado por ditaduras cruéis e brutais, os países do nosso continente vêem-se à beira de um confronto de dimensões internacionais imprevisíveis, a partir da intervenção do governo norte-americano na América do Sul e das crises na Bolívia e na Colômbia. E há questão social: ou resolvemos nossa forma peculiar de apartheid, ou permaneceremos, na história da civilização, como a excrescência de um navio negreiro.


Tudo isso é relevante, mas não é suficiente. A questão cultural é a decisiva. Sem sua consideração, não haverá aquele traço íntimo comum que permitirá a construção da verdadeira solidariedade na auto-determinação. Sem isso, a solução para aqueles graves problemas permanecerá emperrada. Não há solução individual para os países da região. Falo de raízes. Quando se fala nisto, o pensamento costuma voltar-se para o passado. Pensamos em culturas invadidas, destruídas, transplantadas, modificadas. Pensamos no impulso dos estados ibéricos, na tradição católica, na mestiçagem mais ou menos forçada, na formação de nossas classes dirigentes crioulas... Tudo isso também é importante. Mas raiz é mais do que isso. Se raiz é uma coisa que fixa, ela fixa porque inaugura e desenvolve um processo de captação de energias, e de transformação. E nossos processos de captação de energias e de transformação é que são comuns, face à extraordinária e valiosa diversidade de nossos povos.


Sigo a lição do crítico uruguaio Ángel Rama, exposta em seus vários livros (V., p. ex., Transculturación Narrativa en America Latina. Montevideo, Fundación Ángel Rama, 1989.) e em sua vida de intelectual empenhado, tragicamente interrompida num desastre de avião, na Espanha, em 1983. Constituídas as nações emergentes da desorganização dos impérios coloniais, a partir de meados do século XIX o bloco de países definidos passou a enfrentar, sob a égide dos imperialismos, sucessivos processos de modernização. Reformas urbanas rompendo as linhas e traçados do tempo colonial; integração forçada, muitas vezes de modo violento, das áreas de cultura rústica à economia de mercado; projetos de reforma do estado, a partir de camadas médias disputando espaço com as velhas oligarquias e as novas burguesias; acaudilhamento e subordinação dos novos trabalhadores - oriundos das populações nativas, dos negros descendentes de escravos e de imigrantes pobres ou empobrecidos - por projetos populistas e/ou autoritários. Eis aí algumas formas de modernização que periodicamente se abateram sobre os territórios nacionais, em ondas sucessivas sobretudo a partir de 1870, mais ou menos, criando um jogo peculiar entre inclusão - nos planos da modernidade - e exclusão - para fora dos novos mundos rutilantes das promessas de ocasião - das populações.


No plano cultural, esses movimentos criaram uma verdadeira fissura pela modernização: esta é uma palavra mágica, de grande apelo tanto à esquerda quanto à direita. Ainda hoje, quando tantos arautos dos novos tempos, em outras terras, apregoam o fim da história, mesmo nossas classes dominantes não se conformam, ou pelo menos a retórica de seus dirigentes não se conforma. Nossa história ainda não terminou, condenados que estamos a este labor digno de Sísifo de perseguirmos nossa própria modernidade, hoje apresentada sob esta expressão vaga e fantástica, "vamos para o primeiro mundo", seja lá onde fique isso, sejá lá o que isso queira dizer.


A quimera da modernidade inalcançável gerou um mundo de sombras: tudo aquilo que ficou para trás, esquecido ou cicatrizado, e que permite, em nossas culturas, repensar o passado, reabrir continuamente as possibilidades de pensar os futuros que não existiram. São traços peculiarmente marcantes, insisto, de nossas culturas, embora não exclusivos. Podemos traçar o destino e o território dessas sombras atraentes e sedutoras de diferentes maneiras. Seguindo e ampliando o pensamento de Rama, nossas fronteiras nacionais se construíram muitas vezes por linhas traçadas em mapas, sobre mesas européias; algumas seguiram depois os caprichos de grandes negociações na América do Norte ou ainda na velha Europa, como no caso do Panamá, ou da construção mais recente de paraísos fiscais. Veja-se a questão do Prata, dominante na diplomacia sul-americana durante todo o século XIX, com o envolvimento das potências de então, como França, Inglaterra, Espanha e já os Estados Unidos, embora naquela altura em posição lateral.


Os traçados de fronteira nem sempre seguiram as demarcações naturais, ou as tradições culturais. Nações potenciais foram separadas, outras potencialmente diversas amalgamadas, tudo isso com resultados surpreendentes, ora positivos, ora negativos, ora ambas as coisas ao mesmo tempo. Se a Corte Portuguesa, fugindo das tropas de Napoleão, não tivesse vindo para o Brasil, quantos Brasis teríamos hoje? Tudo isso criou um mundo semovente e virtual de comarcas culturais (a expressão é de Rama) que não coincide necessariamente com os sistemas nacionais, instituindo áreas límitrofes de contrabando.


Se é verdade que que nossa vida cultural e política construiu-se intensamente em torno da afirmação das diferenças - pensemos no caso do extremo sul brasileiro, e nas proverbiais rivalidades entre platinos, orientais e riograndenses - também é verdade que há nas regiões de fronteira autênticas culturas de contrabando. E elas não param de nascer e de se reorganizar dentro desses territórios virtuais das nossas comarcas de passagem. O estudo das comarcas faz parte necessária desse projeto de América Latina por fazer.


Alguns exemplos: a comarca pampeana, compreendendo partes de Argentina, Uruguai e Brasil; a comarca guarani, que põe o Paraguai no centro de um país virtual que se distende pelo Brasil e pela Argentina; as diferentes comarcas andinas; a do Chaco e do Pantanal; a comarca amazônica; a do Nordeste brasileiro, agora em contato mais intenso com o Caribe; o encoberto mundo das Guianas; o próprio Caribe, miríade de línguas e culturas diversificadas, mas que se pode abranger num único olhar, como fez Alejo Carpentier no clássico O século das luzes. A América Central, será uma comarca? E o México e o sul dos Estados Unidos? Não me refiro apenas aos imortais faroestes, como Vera Cruz, ou ao filme A marca da maldade, de Orson Welles, mas a atual realidade de uma cortina de ferro na fronteira entre os dois páises, pretendendo deter a imigração clandestina e forçada. E temos de falar de uma comarca muito ampla, mais virtual do que as antecedentes, sem território, que é a comarca atlântica, que pelo passado de migração e escravismo e pelo presente de políticas possíveis nos une a outros continentes.


E há ainda as diásporas, nos outros continentes e na América do Norte, herdeiras dos despotismos ditatoriais e das insolvências econômicas. E há todos os projetos utópicos por levantar, aqueles que não se construíram, e que chamo, em outro texto, Os países que não existem. Estaremos assim mudando o passado, discernindo energias insuspeitas no presente, vislumbrando futuros imprevisíveis.


Em todo caso, eis aí uma América Latina muito concreta por construir, se me é permitido usar essa expressão aparentemente paradoxal. Com ela quero dizer que há trabalho a empreender, trabalho de campo, de gabinete, de escritores e universitários, como contribuição para o auto-conhecimento, base da solidariedade, entre os povos latino-americanos. Isto não é uma apenas uma declaração de princípios, ou uma frase retórica. Isso implica em projetos de pesquisa, viagens, escritos, em convencer agências de fomento, editoras, provedores, capitais e trabalhos, isso exige captação de recursos, isso requer a união de visionários e administradores, de tino e tirocínio, e outros quetais. Ouso até dizer: pode ser que dê certo. Pode ser que dê frutos. Então iremos deitar sementes - e novas raízes - alhures. Pode ser até que o mundo melhore um pouco.


Flávio Aguiar
é Escritor e professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo,
Diretor do Centro Ángel Rama de Estudos Latino-Americanos da USP