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Sem Rumo, setenta anos depois | Imprimir |  E-mail

Léa Masina*


Publicado em 1937, o romance Sem rumo, de Cyro Martins, possibilita ao leitor de hoje confirmar sua importância como o livro que inaugura a já famosa “Trilogia do Gaúcho a Pé”.  Nele estão contidas, ou indiciadas, algumas das principais características das narrativas futuras do escritor, como, por exemplo, as relações fortemente intertextuais com os autores platinos. Não se trata apenas da abordagem genérica de uma mesma temática, - o gauchinho, expulso da querência, que migra para os arredores das cidades - , temática essa que reproduzia uma realidade social já consagrada pela literatura uruguaia e argentina, países que viviam e registravam experiências sociais e políticas semelhantes. O pampa subjugado por oligarquias, o despreparo profissional e humano do homem do campo para a vida na cidade, o calamitoso êxodo rural deixam-se ler até mesmo no texto fundador de José Hernández, o Martín Fierro. Sem aludir a filiações, porque essa idéia sugere submissão, e isso não existe no texto de Cyro Martins, o leitor atento irá deparar-se com vozes fronteiriças, dentre as quais a do argentino Eugenio Cambáceres, também ele autor de um romance intitulado “Sim rumbo”. Do mesmo modo, há,na formação do romance, a presença forte de Alcides Maya, escritor que Cyro cultuava e através do qual formou sua visão de mundo, para nela acolher a intensa simpatia pelos injustiçados e pelos oprimidos da campanha, traço fortemente comum a ambos.


Sem rumo não interessa, ao leitor de hoje, apenas como documento das desigualdades sociais em um mundo rural que se desmorona sob a ameaça de fortes rivalidades oligárquicas, transferidas para a vida política, e que atravessam as primeiras décadas de XX no Rio Grande do Sul, muito embora o mundo gaúcho, então às vésperas da Revolução de 1923, ali se encontra documentado com precisão: usos locais, modos de produção das estâncias, a modernização dos costumes ali estão a ameaçar aquele universo arcaico. Cyro apresenta o mundo da estância visto como um paraíso idílico, não fosse ele habitado por pessoas. E o contrapõe à cidade que recebe os exilados do pampa: uma zona intermediária, fronteiriça, espécie de aldeia onde impera a miséria, a injustiça, o preconceito e  o improviso.


Quem guia o leitor na tarefa de descortinar essa realidade é Chiru, um peãozinho criado guaxo, e que – creio eu – responde pela qualidade literária do romance. Seguindo os passos de Chiru e suas desventuras, o leitor apreende não apenas a conhecer um mundo repleto de contradições e conflitos sociais, como acompanha o processo de formação de uma alma. Chiru sonhara com a estância, tivera a sua, de pequeno, ainda que feita de ossos de gado. Expulso pelos maus tratos do capataz, ele foge e é submetido a uma série de “provas” de sobrevivência na cidade. Sem profissão, sem preparo, termina nas mãos dos aliciadores de votos, os famosos “cabos eleitorais”, encarregados dos famosos “votos a cabresto”: e quase sucumbe a eles. Porém, uma simples frase, ouvida num comício revolucionário, acende algumas brasas adormecidas em seu peito: Viva a liberdade!


Romance de 30, romance de formação, realismo social ou romance engajado, não importam quantas foram e vêm sendo as tentativas da crítica de enquadrar Sem rumo em categorias. O que importa é a leveza do texto, o modo simples como Cyro constrói um mundo que se dissipa, concedendo espaço tanto para a voz telúrica e apaixonada do narrador, herdeiro que é de Maya, quanto para a visão progressista que aposta no homem e na sua integridade como único elemento capaz de promover mudanças.  Mesmo tensionado e defrontando-se com um sem número de dificuldades, Chiru não se entrega, não é um quixote e sequer um anti-herói.  Desnecessário rotulá-lo: Chiru é um homem, apenas, que cresce aos olhos do leitor, levado esse pela prosa macia e encantatória de Cyro, com suas charlas, regionalismos e volteios.


Ao completar 70 anos de sua publicação, Sem rumo pode ser lido com prazer, gerando um leitor calmo, livre da tensão pela denúncia política, que se compraz com as aventuras da personagem e seu crescimento interior. Porque tem mulher e filho, e porque tem alma gaúcha, Chiru enfrenta com denodo as armadilhas que o aguardam por essa estrada longa e, com certeza, metafórica da vida. Herdeiro de Miguelito, de Ruínas Vivas, é próximo também do Fabiano, de Vidas seca, pertencendo à estirpe de tantas outras personagens que povoam as páginas do uruguaio Javier de Viana, escritores certamente lidos nos meios intelectuais que Cyro freqüentava.


Vale a pena reler Sem Rumo não apenas para conhecer-se a visão crítica dominante, centrada na sociologia e na história, que aponta para a ditadura borgista e investe contra o mito do centauro dos pampas: Cyro soube, como ninguém, fazer a personagem ir crescendo aos olhos do leitor, avultar de tal modo que chega a criar vida própria. Por Chiru e pelas magníficas passagens em que a região da campanha alcança uma atmosfera incomparável, a leitura de Sem Rumo, dentre tantas, se justifica.


*Léa Masina é Crítica literária, Doutora em Literatura Comparada,
Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul