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A ENTREVISTA*  E-mail
Ficção

 

Conto de Cyro Martins

 

Chegou à sua parada antes do que já estava desejando, não obstante a pressa inicial. Deixou no ônibus, resolvidas, algumas das inquietadoras interrogações que o afligiram durante o percurso da cidade até ali. O bairro estava lindo, na sua pacatez asseada. A tarde convidava para longos passeios a pé. O crepúsculo sobre o rio, um prodígio.

 

O Dr. Augusto do Amaral subiu a ladeira devagar. Deteve-se um instante ao pé do enorme depósito d'água, bem no tôpo da coxilha em cujas fraldas se erguera o bairro, e deu um vistaço alegre na paisagem. Sentia-se desoprimido, talvez com uma certa tendência ao vibrante. Saberia governar-se, entretanto. Nunca se abandonara ao sabor das emoções. Poderia, quem sabe? começar a entrevista com essa declaração. Não lhe parecia que ficasse mal. Daria, assim, de saída, um traço grosso do seu caráter. Os leitores precisavam saber com quem estavam tratando. Bem, o repórter faria um intróito com o devido respeito,certamente. Talvez até já o trouxesse à noite, pronto, para submetê-lo à sua aprovação. Ele apararia os excessos. Ah, quanto a isso, não tinha dúvidas. Mas deixaria o que fosse justo e merecido. Depois daquela primeira frase, acrescentaria: «O assunto em foco, cuja repercussão a esta altura dos acontecimentos já se toma enfadonho ressaltar, é desses que apaixonam... Mas eu não sou homem de paixões!»

 

- O que é isso? Falando sozinho?

Riu encabulado. Na frente da casa, dona Aurora, corada, de mangueira em punho, aguava o jardim.

- Falando sozinho, eu?

- Sim, homem, palavra, tu vinhas falando sozinho, ou então com algum companheiro invisível. Mas, que me conste, até hoje ao meio-dia não eras espírita.

- Não é possível que...

 

Não terminou a frase, notando que a mulher, entretida em regar as plantas, desinteressara-se do caso. Assim, entrou logo, sentindo-se um tanto vexado pelo flagrante em que fora colhido. Indo direito ao gabinete, largou a pasta em cima do «bureau». E agora, era tomar algumas providências urgentes. Primeiro,recomendar que não deixassem as crianças fazer barulho, e segundo, avisar que não queria janta, tomaria apenas um copo de leite. Aurora talvez estranhasse isso e lhe viesse importunar com indagações, mas ele saberia explicar o que se passava, em poucas palavras.

 

Dadas as ordens, fechou-se. Ia sentando quando se lembrou que não seria demais uma olhadela no espelho, porque, evidentemente, a entrevista seria com fotografia. Incontinenti, dirigiu-se à porta. Ao levar a mão ao trinco, porém, hesitou. Era incrível que um homem da sua envergadura baixasse a semelhantes preocupações. Espantoso, aquilo acontecer com ele. Que diacho, era um cidadão eminente, um professor de Direito, um advogado provecto! Esmeros daquela ordem não lhe sentavam. Precisava esmerar-se, sim, na arquitetura das ideias e no polimento da forma.

 

A propósito, podia ler algumas páginas de Rui para revigorar o estilo. O trabalho forense vicia tanto a linguagem... Não desejava falar como profissional, mas como intelectual, que o era, e puro, com vistas largas sobre os temas, filosóficos.

 

Depois de permanecer por alguns momentos de pé, junto da porta, com uma mão no bolso e a outra no rosto, a cabeça levemente erguida, baixou os olhos sobre a roupa, concluindo, animado, que, do jeito que estivesse, para um homem da sua estatura moral, estaria bem. E até seria bom que não aparecesse demasiado engomado. Com esta convicção, sentou-se, ainda com certo empertigamento, mas foi aos poucos recostando-se, afrouxando-se, em busca da posição mais repousante, até iniciar, distraidamente, uma série de palmadinhas inconsequentes nos braços gordos da poltrona. Com lentidão, circunvagou um olhar absorto pelo espaçoso gabinete, entretendo-se por fim na contemplação da biblioteca, em cujas prateleiras se alinhavam algumas coleções ainda por abrir. Freud, por exemplo, repousava ileso. Mas, ah, tinha o Freud completo. E já o citara em aula. Por sinal que a citação fora um pouco forçada, não se quadrando bem ao assunto. Fruto do primeiro entusiasmo, logo após a aquisição da obra. De qualquer maneira, causou o seu efeitozinho entre os alunos. Houve mesmo um que, na saída, lhe fez perguntas sobre psicanálise. Valeu-lhe a circunspecção com que o encarou e o ar distante, algo paternal e frio, que sabia assumir quando as circunstâncias o exigiam. O rapaz que deixasse aquelas cogitações para mais tarde, por enquanto tinha a absorvê-lo todas as horas, desde que se dedicasse com afinco ao estudo, às matérias do curso. De mais a mais, Freud era um tanto inquietante e - acrescentou, reverente à orientação da Reitoria - subversivo.

 

Bateram à porta.

 

- Entre.

A empregada entrou com o leite.

- Já?

Foi um «já» tão brusco, que fez o braço de Leonor estremecer e algumas gotas de leite escorrerem beirada do copo abaixo.

- Que horas são?

- Sete e meia.

- Que barbaridade, disponho só de hora e meia, e ainda não fiz nada!

 

Não o entendendo, Leonor recuou um passo, arregalou os olhos, apreensiva.

Ele virou o leite num sorvo. E imediatamente, alcançando-lhe o copo:

 

- Fecha a porta, que eu preciso pensar.

 

A rapariga afastou-se, receosa, estranhando aquela transformação repentina num homem em geral tão calmo e delicado. Decididamente, se não estava, pelo menos parecia transtornado. Que olhar mais esquisito! E uns modos que não eram dele, estrambóticos! Pensar, ela também pensava, no Alceu, nos bailes do «Colombo», nas fitas, nos mocinhos das fitas, mas não precisava se encerrar para isso. Às vezes pensava cantando e batendo bife. Ia avisar dona Aurora. Aquilo não estava direito.

Talvez fosse pura desconfiança sua. Um doutor tem lá os seus modos diferentes de pensar. .. Não iria dar uma rata? Relutou um bocado, mas acabou avisando. E como resultado do seu alarme, três minutos depois Aurora torcia o trinco, sem bater antes, um tanto afobadamente.

 

- Puxa, que vocês não me deixam quieto, santo Deus!

- explodiu o professor, de cara arrenegada.

- O que é que tu tens, Augusto? Estás sentindo alguma dor?

- Tenho falta de tempo! - retrucou Augusto, secamente, imperturbável na

decisão de aproveitar ao máximo os minutos que ainda o separavam do repórter.

- E por isso é preciso ficar nessa atucanação, homem de Deus?

Ela riu gostosamente, fazendo tremer as intumescências que lhe encurtavam as pálpebras inferiores.

- Ora, por favor, mulher, me deixa em paz! - Soerguendo-se na cadeira, de

sobrancelhas franzidas e punhos cerrados, parecia estar na iminência de cometer uma violência, pelo menos de dar um soco na mesa, mas na voz ela percebeu uma certa vibração humilde de súplica quase desesperada.

- Afinal, te aconteceu alguma coisa?

Ele não ergueu os olhos, mas teve a impressão de que a mulher botara as

mãos nas cadeiras, afastara um pou­co as pernas e pusera um pé atrás.

- É que daqui a pouco estará aí o homem e eu ainda não pensei nada!

- deixou escapar maquinalmente, não com o tom displicente com que o desejaria, mas abafado, com uma contração nervosa na face.

- Mas que homem?

- O jornalista, o... repórter.

- Repórter? - ela espichou o pescoço, fazendo uma cara de estranheza.

- Sim, uma entrevista - afirmou após um intervalo que foi mais longo do que

tencionava, procurando afetar calma e segurança, mas compreendendo que a sua conspicuidade fora arranhada.

- Vais dar uma entrevista, então?

Era o que faltava! O professor Augusto não pôde mais.

Extinguiu-se-lhe a paciência. Quase dum salto, levantou-se para

responder, gesticulando desapoderado do auto­domínio.

- Decerto achas absurdo que um catedrático de Direito, como eu, que goza do

melhor conceito, seja entrevistado?! Detesto exibicionismos, bem sabes, mas o assunto sobre o qual serei abordado é da maior relevância, interessando à

imprensa, ao povo, ao Estado e, quiçá, ao País!

Cessou de falar, mas ficou-lhe cintilando nos olhos um desejo de gritar - basta!, - para completar o espanto de Aurora.

- O que eu acho absurdo é tu ficares nesse nervosismo. Nunca te vi assim.

- Nervosismo? Nervoso, eu?

 

Augusto postara-se ao lado do «bureau», numa atitude corporal de transição entre a posição de sentido e a de descanso, disposto a provar à mulher que absolutamente não estava nervoso, que ela estava dizendo asneiras.

Aurora apreciou condescendentemente toda aquela intrepidez e, pessoa bem humorada, dificilmente removível da maciça base de realidade sobre a qual assentava a sua prudência, retirou-se sem ruído, antes mesmo que ele iniciasse a «prova» da sua calma, deixando-o como queria, sozinho, entregue à urgente meditação. Silenciosa, fechou suavemente a porta, como para não afugentar ainda mais, com um estrondo insólito, as ideias que o marido tanto se empenhava em agrupar, alinhar e por fim hierarquizar.

Homem de boa estatura, magro, cabelos pretos e ondea­dos, testa larga, cara comprida, nariz afilado e um tanto curvo, bigodes aparados, queixo pontudo,Augusto não se queixava do seu físico. Quando se vestia de preto, achava-se romântico. Os olhos, por momentos, tinham uma expressão hesitante.

Aurora devia ter tomado providências muito enérgicas com a criançada, porque o silêncio que sobreveio na casa toda depois que ela saiu do gabinete foi praticamente absoluto. O professor reconsiderou a sua atitude e pensou nela com carinho, rendendo-se a um estado de espírito de quase risonha fadiga. Uma esposa, uma excelente companheira! Bem que ele lhe poderiater dado uma vida melhor, de mais representação, mais ventilada socialmente.Mas sempre fora um sujeito tão enfurnado! Graças a isso, entretanto, atingira a posição de que desfrutava, pois não seria malgastando o tempo em diversões que conquistaria a cátedra. Demais, nunca notara qualquer manifestação decontrariedade com a vida que levavam.

Viu as horas - oito e dez! Deu quase um salto e estalou os dedos, alarmado com a ligeireza dos minutos que passavam como espectros de pernas compridas, fazendo piruetas, contra o fundo movediço, de mágica, da sua pró­pria inquietude.

Fora um contratempo lastimável, por todos os motivos, aquele pequeno incidente com a mulher. Além dum tempo precioso, malgastara também boa dose da serenidade tão necessária para a ocasião. Contudo, ainda dispunha de três quartos de hora, o suficiente para um espírito como o seu, afeito à síntese, disciplinado, embora, reconhecia, um pouco lento.

Passeou pelo gabinete, querendo ser imperturbável. Pegou um livro ao acaso,como quem arranca um folha de árvore, de passagem, e sai mastigando. Ao fim de duas voltas, guardou-o sem abrí-lo. Por força do hábito, inclinou-se defronte ao rádio para ligá-lo, mas corrigiu-se em tempo da distração.

O repórter traria as perguntas prontas, iria improvisá-las ou pediria uma exposição geral do assunto? Fosse como fosse, ele precisava estar preparado para dizer ape­nas o que quisesse, e não se abandonar à batuta do en­trevistador.

Augusto experimentou uma sensação desagradável de umidade morna,

sobretudo nas costas, na testa e na palma das mãos. Recém se deu conta de

que estava com o gabinete hermeticamente fechado. Por isso que as ideias não vinham...

Num gesto um tanto precipitado, abriu uma janela, tirou o casaco, meteu o narizpara o lado de fora e respirou com avidez o rico ventinho que soprava do

sul, sentindo que se tonificava ao ritmo daquele exercício preparató­rio da grande aventura - pensar! Depois contemplou as luzes tremeluzindo no outro bairro espalhadas pela encosta do morro. Teve ímpetos de compará-las a estrelas cadentes e evocou algumas páginas nacionais famosas, como a dos pirilampos, de «Chanaan», na sua opinião um dos pontos altos de Graça Aranha, e o «Caçador de Esmeraldas», de Bilac, tendo mesmo atirado em surdina para a noite, de peito dilatado e ressonante, como se abrigasse um enxame de marimbondos nos brônquios:

«E sereno, feliz, no maternal regaço

Da terra, sob a paz estrelada do espaço,

Fernão Dias Paes Leme os olhos cerra. E morre».

E deixando essas bolhas sonoras suspensas entre a terra e o céu, dirigiu-se à poltrona da sua preferência, afundando-se devagarinho nas molas frouxas, e desta vez para um ajuste definitivo com as ideias. Cruzou as pernas, entrelaçou os dedos e repousou neles o queixo, ficando de olhos elancólicamente espichados para a projeção imaginária da nebulosa interior. Bem poderia começar rememorando Ruy Barbosa, na Bahia, ao regressar à terra natal depois de mais uma de suas campanhas famosas. «Depois disto, diante disto, nem sei como principie . .. Verde ninho murmuroso onde cantou Castro Alves...» Entretanto, talvez não sentasse numa entrevista essa arrancada patética. Demais, não perderia por esperar. Em breve, decerto, estaria enfrentando multidões inquietas, ávidas de eloquência e de

liberdade. E então, sim, seria a hora de lhes aplicar o seu amado Ruy!

Nesse instante travou de novo um curto combate com a tendência ao desânimo e lembrou-se que não soaria mal, pelo contrário, até ficaria bem, se abrisse o «interview», como se dizia na República Velha, dirigindo-se à mocidade das Escolas. E sem pestanejar, viu-se repetindo Alcides Maya: «Mocidade há de ser sempre aventura e sonho, ousadia e resolução, sacrifício de energia e sacrifício de amor». Exultou ao embalo desse ondulado dois a dois do estilo de Alcides e simulou modéstia para si mesmo, alegando falta de memória para o repórter.

O rapaz não se mostrava desinteressado, a ponto de provocar desânimo,

embora entre ele e esses grandes nomes e as belas frases, evocados pelo

professor como bens culturais da sua geração, pairasse, no plano nacional, o

isolamento de quinze anos de ditadura, sem eleições, sem comícios, sem

liberdade de imprensa, com escassa liberdade de locomoção e outros freios.

No cenário internacional, apenas a Segunda Guerra Mundial.

- Contudo...

- É um gosto ouvi-lo, professor.

- Como repositório do passado? Ou como evasão da terrível problemática de hoje?

- Como perspectiva histórica, professor.

- Talvez seja mais apropriado dizer: como fórmula de intercâmbio entre as gerações.

Na pausa que sobreveio o professor procurou captar a essência da situação

criada entre ele e o repórter, representante das novas gerações. Ele, apenas

um cinquentão, mas intelectual muito de cátedra, muito de gabinete, muito de

frases, vibrando no plano do geral e do abstrato. O repórter, uma presença

superficial, porém com um toque de atualidade a renovar-lhe o interesse pelo dia a dia que some hoje e reaparece amanhã transfigurado, numa corrida sem transcendência, mas conflituosa, isto é, viva. Ele vivência o panorama mundial do momento com preocupações de ordem intelectual, ganhando às vezes muita altura, tanta que se perde no vago e no obscuro. Por sua vez, o repórter-geração nova vive de forma demasiado angustiosa a situação presente, de molde a bloquear-se para o passado e a não ter futuro.

Depois de tais reflexões, o professor sentiu de novo a necessidade de abrir outra clareira evocativa na imaginação, tão do feitio da sua natureza nostálgica.

- Você nasceu em...

- 1921.

- Bem, então você ainda não tinha nascido. E o curioso é que eu mesmo não

estou certo do ano em que se passou o episódio que lhe pretendo narrar. Creio que foi em 1919. Por aí. Estávamos no auge da ditadura provin­ciana. Uma ditadura positivista. Excêntrico, não lhe pa­rece?, esse rebento contista

perdido cá por estas para­gens! O fenômeno ainda está à espera do sociólogo que o há de explicar.

Depois de uma pausa, durante a qual aguardou em vão uma intervenção menos simplista do repórter que lhe permitisse voos mais amplos, prosseguiu, evocativo:

- Os milicianos haviam assassinado em plena rua um líder estudantil oposicionista. Dois ou três dias após o fato, os estudantes improvisaram um comício no centro da Capital. Numa praça, rodeado de amigos e admiradores, o tribuno da cidade conversava. Quando os manifestantes o localizaram, exigiram-lhe a palavra. De pé no mesmo banco em que estivera sentado até então, ouriçado, o tribunoominou o tumulto com o olhar. Impo­nente e memorável, preparava-se para açoitar com o verbo o ato odioso. E a frase da arrancada ficou famosa:

«Matar a polpa viva do coração da mocidade é apedre­jar o futuro!»

- Assim, contada com este calor, a história fica bonita, professor!

Augusto sentiu que o seu «élan» humanista tocara afinal a alma do

repórter, atingindo-a em determinado núcleo sensível, não saberia avaliar por

quanto tempo. Pensou, então, exaltado, que a ocasião havia chegado, e não

era de perdê-la, tão fugaz é o entusiasmo desses rapazes! Com efeito, depois de tantos circunlóquios, bem poderia amenizar o aprumo e sondar - ah,doía-lhe, doía-lhe muito confessar-se! - como um ambicioso vulgar, através da possível repercussão que a entrevista viesse a ter, quais as chances políticas para um homem da sua envergadura moral.

Parou. Depois, pensativo:

- Confidencialmente lhe direi que...

- Prudência, doutor! Não se apresse em desvendar suas intenções secretas.

Olhe, neste, como noutros, o segredo é a alma do negócio. Demais, o sr. é um candidato potencial a desafiar oportunidades.

- O sr., hem, jovem, não perde vasa para me fazer insinuações, as mais descaradas.

- E de quem veio a provocação?

- Reconheço que não pesei suficientemente as minhas palavras, seu tratante!

- O seu embaraço me anima a lhe fazer mais uma insinuaçãozinha. Ou mais umas. Vamos, professor, dê curso à imaginação. Veja-se em plenário, na Câmara ou no Senado. Na tribuna, o famoso jurisconsulto dos pampas. Mais uma vez o Brasil vai curvar-se ante o Rio Grande, como aliás a Europa já o fez ante o Brasil! Expectativa.

A nação silencia para ouví-lo, aguardando um pronuncia­mento sensacional.

Começo polido. Frases redondas, des­sas cadenciadas que se espicham e

se enrolam no final enchendo a boca do orador ao colar as duas pontas, como

um chicle balão. Ainda considerações gerais.

- A casa...

- ... espera uma definição de atitude.

- Entre em matéria, sóbrio, direto, como um parlamen­tar moderno.

- De resto, o regozijo do país pela reconstitucionalização, pela perspectiva de

reforma dessa mesma constituição malnascida, com promessas de eleições diretas...

- Cuidado, professor, não se comprometa, fique no terreno das divagações

teóricas, onde sempre é possível uma manobra estratégica. Ataque a chamada revolução meio de soslaio, através da exposição erudita de princípios políticos.Evoque Roosevelt, por exemplo, e taça a apologia das quatro liberdades. E também, de passagem, para ser um pouco mais objetivo, acene na direção daFrente Ampla, por onde, de tão larga, a qualquer momento é possível entrar ou sair. Mas volte em seguida a afirmar a sua presença de humanista nos dominós da política. Entretanto, olho com os imprevistos, com as manhas da vida pública,com os interesses mesquinhos, próprios e alheios, e tenha sempre em vista a advertência de um dos seus autores prediletos da juventude, Raul Pompéia:

«Vem de longe a enfiada das decepções que nos ultra­jam!»

De chofre, olhou em torno, atónito. Espantoso, como se perdera em fantasias!E como malgastou o tempo! Não, que esperança, não faria papel de

paspalhão. O sentido rigorosamente realista preponderaria de agora em diante no encadeamento de suas ideias. Ah, antes, porém, diria na entrevista, ou mais tarde, no parlamento, que esses trechos dos autores da sua mocidade,remembrados ao acaso das evocações...

- Cristalize no melhor vernáculo os seus conceitos, de molde a incorporá-los

definitivamente ao património da nossa eloquência parlamentar.

- No discurso de estreia, analisarei sobretudo a encruzilhada da histórica que vivemos.

- Algo assim como um ajuste de contas com a problemática do Estado Moderno?

- Um paralelo das forças comprometidas no conflito so­cial contemporâneo.

- E até agora, professor, de substancial?. ..

- Bem, preocupa-me a compreensão integral da conjuntura internacional, condição sine qua non...

- Em todo caso, ensaie algumas reflexões objetivas.

Augusto meneou a cabeça como duvidando da própria capacidade. Contudo,

predispôs-se a pensar, seriamente. E uma ideia aflorou, simples, com uma

ingenuidade de virgem de antigamente, não desfigurada pelo estilo político,

espiou a amplidão do novo mundo de Augusto, aspirou o cheiro dos livros,

cabriolou como um diabinho arisco e ia já desprender-se do cativeiro em que a mantinha havia anos o bom senso do professor, quando foi impiedosamente puxada da boca de cena com um sequíssimo «não serve». Não. Nada de confidências. Objetivo e sóbrio, o que deveria ser. Também não entraria na parte substancial da questão, perigosa, comprometedora. Limitar-se-ia aos aspectos exteriores, de interesse anedó­tico, o que constituísse, enfim, aquilo que vulgarmente se chama um bom prato de jornal. Como remate, doutrinariaum pouco sobre a matéria, uma pitadinha de cul­tura apenas. Poderia até citar autores. No fim, os lei­tores ficariam sabendo tanto do assunto, quanto antes da leitura. Sair-se-ia assim galhardamente da empreita­da, dentro da técnica usual.

Mas... Foi um relance de memória, imediatamente su­mido. Entretanto,

inconformada com a reclusão, a lem­brança ficou bracejando no escuro, fazendo barulho, perturbando-lhe a serenidade de raciocínio que por fim ia alcançando. Na verdade, não podia negar que a questão tinha certos aspectos que confinavam com a política es­tadual. Talvez houvesse nascido daí a ideia das reportagens sobre o problema. Claro que se esquivaria de abordar esse lado,

bastante escabroso, principalmente num momento convulsionado como aquele,

com eleições à vis­ta, comícios e listas de candidatos a deputado e senador em

formação. Listas de candidatos a deputado e sena­dor em formação . . .

Acendeu um cigarro, atirou a cabeça para trás, afagou urna pêra imaginária, os

Bom dia Dra. Maria Helena Martins,

Conforme nós conversamos na sexta-feira, foi feita uma análise da sua carteira atual, onde foi constatado que por serem fundos feitos para varejo é cobrada uma taxa de administração muito excessiva que não condiz com os riscos que você está sujeita e nem com rentabilidade desses fundos. Com isso fizemos uma carteira sugerida para aplicação em fundos que está anexa, aconselhando a troca de sua carteira atual para essa nova carteira, que foi bem diversificada para mitigar os riscos e também ter a oportunidade de apresentar uma rentabilidade mais compatível com o esperado.Procuramos os fundos que apresentam um melhor histórico de consistência e de rentabilidade e com uma gestão bem conceituada.

Para os fundos em ações que você tem de Petrobrás e PIB, nossa sugestão é para a troca para fundo de ações que tenham liberdade para investir em todas ações, para que com isso seja eliminado o risco de uma empresa especificamente, espero que você aprove nossa sugestão e estaremos entrndo em contato para ajuda-la em possíveis duvidas que você possa ter.

Atenciosamente olhos postos no teto e o pensamento patinando naquilo como disco emperrado:

senador, senador, senador, sena ...

«- O senhor nunca foi político militante?

- A política partidária nunca me seduziu.

Opa, aqui poderia citar o Eça: «A melancólica servidão dos partidos ...»

Como brotara firme e pronta a resposta! Firme, pronta e neutra ! Portas

escancaradas para todos os ventos . . .

Isto é o que se chamava, nos bons tempos, devolver o mote ao pé da letra.

- No entanto, o senhor descende duma família tradicio­nalmente partidária.

- Ah, isso eu não nego. Meu avô foi castilhista comba­tente em 93 e o meu pai

chefe político no seu municí­pio durante cerca de trinta anos.

- Sim, muito conhecido o coronel. . .

- Amaro.

- Justamente. Admira-me que o sr. tenha preferido a carreira universitária, em

lugar de se valer da tradição familiar, da cama já feita, para subir na política.

De quantos apertos financeiros o sr. se teria livrado? Claro que não estou a

insinuar. . . a insinuar desonestidades.

- Vocês, jornalistas, são dum atrevimento ! . . .

- E acaso não somos nós que fazemos a glória dos po­líticos?

- E também a desgraça.

- Muito ajudados por eles mesmos. Mas não nos abes­pinhemos antes do

tempo, vamos agarrar o touro à unha.

Veja, professor, as eleições estão aí, para dentro de meses, os novos partidos

andam à cata de nomes. Uma opor­tunidade, com tanta gente dos velhos quadros

cassada!

Augusto voltou-se para um lado, lentamente, como se estivesse vendo alguém abrir

devagarinho uma janela.

- O amigo fala como um homem experiente e não como um jovem açodado.

- Cuidado com essas palavras em desuso, professor. Fi­carão bem na cátedra,

mas na tribuna política...

- Deplorável, sem dúvida, a deteriorização do vernáculo!

- Eu o compreendo, professor, e porque o compreendo não me julgo

demasiado indiscreto perguntando-lhe qual dos agrupamentos atuais, apelidados

partidos, merece a sua simpatia?

- Creio que ainda há tempo de sobra para contemplar, pesar as probabilidades de

um lado, de outro, e afinal resolver.

- E ficar ardoroso partidário!

- Bem, agora sim, o sr. está se tornando indiscreto.

- Perdão! A profissão nos trai a toda hora.

Imóvel na poltrona, os músculos do dorso e das pantur­rilhas doloridos da tensão

exagerada, Augusto parece escutar. Mas intimamente experimenta um frêmito de

ênfase, como um trovejar longínquo em dia de céu de aço, quando ainda não se

sabe de que lado irá vir a chu­va. Até agora não cogitara do programa de

nenhum dos partidos em formação, mais que por alto. Entretanto, para ser

franco consigo mesmo, podia adiantar que não via diferenças de monta

entre um e outro, nem interesses inconciliáveis entre ambos.

- Posso registrar?

- Não. Estava apenas meditando em voz alta.

- É lástima. Perde-se, assim, um conceito lapidar...

- Não exagere, amigo, a importância deste cândido dis­cretear.

- Deplorável, deplorável!...

- Deplorável o quê?

- Esse «cândido discretear».

- Um homem deslocado é um homem ridículo.

- Opa, gostei, professor. E lhe digo mais, a habilidade de algumas de suas

respostas me persuade duma certeza.

- Posso saber que certeza é? Veja, agora sou eu que pergunto. - E torceu o

pescoço para um lado, com uma vaga noção de que havia ali uma outra presença

além da sua. Sorriu com afabilidade. Bem poderia ser aquele o momento ótimo para

bater o «flash».

- Com efeito, não me atrevo. Um pedido, porém, eu lhe faria: não despreze tanto

a política, o sr. tem muitas possibilidades nesse vasto campo.

- O sr. está me pervertendo, não esqueça que sou um homem afamiliado.

Bem encostado agora no espaldar da poltrona, a cabeça estirada para trás, o

indicador da mão direita enrolando um negalho de cabelo, com uma sensação

interior de pes­tanejar alvissareiro que lhe amolecia os amadurecidos

propósitos de abstenção política, começava a tolerar que a imaginação

consumasse orgias. Aquela entrevista sai­ria num momento psicológico e

fatalmente chamaria as atenções gerais para a sua pessoa. Demais, aquele

repórter, tão jeitoso e convincente. .. Bem que o rapaz la­vraria um tento se

sugerisse a sua... (sentiu escrúpu­los, corou). .. candidatura ao parlamento. E logo,

num crescendo de ousadia: naturalmente, pelo partido mais garantido.

- Está claro também que o sr. responderia favoravel­mente a certas exigências

usuais nesses casos, para fins eleitorais...

- Está claro, está claro, por aí não trancaria o barco!

- explodiu sem a mínima hesitação, quase jovial.

Surpreendeu-se meio de pé, falando em voz alta. «Que triste figura estarei

fazendo eu? A minha linguagem se vulgariza como se já estivesse apertando mãos

e pedindo votos!»

A moleza da poltrona e a mornidão do ambiente, porém, O reconciliaram logo

com a voz macia do interlocutor.

- Não diga isso, professor, não recue, siga avante, que uma trajetória triunfal

o espera. Não se impressione com o papel que está representando, é o papel de

todos, o papel da vida corrente, cópia servil. Aspira a origina­lidade de ideias ou

de atitudes? Então não se meta em política.

- Aceita um cigarro? Não lhe ofereço charutos porque não fumo charutos.

- Mas fumará.

- Simpático otimismo!

- No entanto, levo uma vida apertada.

- Ah! - sobressaltou-se, estranhando a brusca mudança de tom e de rumo na

conversa do rapaz.

- O sr. me olhou com descrença? Um repórter ganha muito pouco.

- Absolutamente. A sua pessoa me inspira confiança e muita simpatia. Se lhe puder ser útil. ..

- Já sei onde o sr. mora. Usarei de franqueza.

- Nem eu supunha outra coisa.

- Agora, uma frase para o remate, algo de positivo e, como direi?, vibrante.

- Pondero-lhe que nem tudo que eu disse deve ser pu­blicado.

- Perca o cuidado, professor.

- Parece que esvaziei a taça. O sr. teve o mérito, ou o demérito, de abalar os meus princípios!

- Eu trouxe apenas um pouco do cheiro das ruas.

- E como me fez bem esse cheiro! Enche-se a boca com a palavra PROFESSOR, os alunos dizem, outros repetem, a gente se convence que realizou uma grande vida!No meu caso, tem sido uma comovente ruminação de sebentas. E enquanto isso, os anos vão correndo, os cabe­los embranquecem, a inteligência caruncha. ..

- As oportunidades passam. ..

- As oportunidades passam! - Sacudiu a cabeça repeti­das vezes. - Desculpe este desabafo, mas esta ocasião foi providencial. Agora compreendo que andava encadernado há anos. Encadernado de impoluto! Gratidão, uma infinita gratidão,é o sentimento que lhe voto.

- Quer dizer, então, que está disposto a romper. ..

Arrebatadamente, gesticulando:

- Sim, a quebrar, estraçalhar o marasmo da minha vida!»

Já todos dormiam na casa, dona Aurora, as crianças, a empregada. O bairro

adquirira um silêncio de campanha distante. Só as rãs não tinham emudecido,

mas o doutor Augusto não as ouvia.

Foi nessa paz que tilintou o telefone. Sobressaltando-se, estremunhado, o

professor correu a atendê-lo.

- Sim, é ele mesmo.

- Desculpe, doutor, mas surgiu um contratempo sério.

- Sim.

- O caso é o seguinte: o diretor deu contra-ordem, suspendendo as reportagens que pretendíamos iniciar amanhã com a sua entrevista. Não avisei antes porque tive que fazer um serviço urgente de rua.

- Sim.

- Agradeço muito a boa vontade que demonstrou comigo.

- Sim.

- Conto consigo para outra ocasião.

- Sim. Está bem. - Largou o fone num gesto mole, apatetadamente, e ficou ainda tempos no gabinete, amargando a humilhação sofrida, até recobrar um pouco da dignidade antiga a fim de poder enfrentar a inevitável pergunta da mulher: «Deste a entrevista?».

 

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A Entrevista. In. A Entrevista(contos). Porto Alegre, Sulina, 1968.