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Doble Chapa "Campo Fora" | Imprimir |  E-mail

Ligia Chiappini - Professora e pesquisadora de Literatura


Recentemente um jornalista de Sant'Ana do Livramento me ensinou que fronteiriços de origem como eu, com dupla nacionalidade, são chamados "doble chapa". Agora, depois de uma recente visita a essa fronteira aberta de Livramento e Rivera, onde passei parte da minha infância e que não via há muitos anos, me reconheci como ser culturalmente e lingüisticamente híbrido. E senti que isso era bom.


Voltei para Berlim relendo Campo Fora de Cyro Martins, que já era conhecido da estudiosa de Literatura. Mas essa nova leitura reforçou em mim aquele sentimento. Por isso é como "doble chapa" que procuro retraçar aqui um pouco de uma releitura não prioritariamente enformada pela academia (cujo ranço é meio inevitável), mas pela experiência do auto-reconhecimento em formas antigas de narrar e de dizer que Cyro Martins apanha nos seus diversos contos de modo tão sensível e plástico, materializando, nas falas dos seus gaúchos e na do narrador que a eles nos apresenta, um certo ritmo sem pressa que Guilhermino César identificou como sendo o dos prosadores natos.


Várias imagens desfilam na minha mente depois de reler Campo Fora: da natureza que fala por sinais que só o gaúcho entende; das carreiras, onde a festa de repente encontra a morte; do gaúcho-zahoris , cujos olhos têm o poder de varar a terra, descobrindo o tesouro enterrado; de um menino, acendendo velas para o Negrinho do Pastoreio e campeando na noite escura vacas fujonas em que se disfarça o boi barroso; do guri tinhoso que cavalga na perna do pai; de um outro, de "olhitos alarifes",que brinca de lutar e morrer com seu cavalo de pau e sua tropa de "ossada limpa", preparando-se assim para um futuro previamente traçado no rastro de índios valentes como o tropeiro Ricardo.


Estranhas imagens essas para uma "doble chapa", desgarrada e disfarçada sucessivamente em portoalegrense, paulistana e berlinense. Estranha aventura essa da leitura que faz embarcar de corpo e alma num mundo tão próximo e tão distante, um mundo mais de homens e de bichos que de mulheres. Estas ou são ausentes, ou apenas mencionadas, ficando quase sempre na sombra do gaúcho macho, valente e chalrador, mas deixando entrever, nas suas curtas aparições, o seu destino trágico num mundo violento que pode levá-las à loucura e até mesmo ao suicídio.


Na verdade, esse mundo masculino e brutal nos é apresentado de um modo tão sensível que conquista também as leitoras. A sensibilidade é de filósofo, de psicanalista e de poeta, mas também de crítico das nossas eternas mazelas sociais que, mesmo antes de se ter transformado no cronista do gaúcho a pé, já o pressente, pendendo para a representação, interpretação e expressão dos seres simples e marginalizados: velhos peões gastos pelas tropeadas brabas da lida e das guerras; pobres meninos aos quais espreita uma sina idêntica ou pior; frágeis homens fortes, enfrentando secas e tempestades campo fora; bobos e loucas sem amor, andando sem rumo pelas estradas da vida; cavalos de olhos tristes que, apesar do mimo de seus donos, arquejam esmorecem e morrem sob o peso do gaúcho em fuga; cachorros que parecem gente, como o Coleira, guaipeca velho e maltratado que ainda teima em sonhar. Aí Cyro Martins parece ter antecipado a figura da cachorra Baleia, criação universal de Graciliano Ramos em Vidas Secas . Mais despretencioso mas nem por isso menos sofisticado, Campo Fora nos remete à obra prima posterior e também aos bons antecedentes do regionalismo gaúcho, como é o caso de Contos Gauchescos e Lendas do Sul de João Simões Lopes Neto, do qual absorveu e recriou não apenas alguns temas, causos e tipos como também um certo tom de "buenacheria fronteiriça".


Isso se faz com estilo e arte. Pois, se "parador e ginete se nasce", bom contador também. Os causos, tipos e cenários só se fixam porque um estilo aparentemente sem estilo, feito de elipse, ritmo e poesia, nos leva a vivenciá-los. É esse estilo que me permite sair atrás do guri e varar uma sanga no pingo que nunca cavalguei; campear, com o posteiro Bernardo, o que não perdi; morrer enterrada no deserto como o homem que só acorda para se ver morrendo, "os braços em cruz com o corpo"; cair na charla solta do galpão e matear entre a gauchada com a qual não convivi; bailar ao som dos floreios da gaita que toca um tango argentino; jogar-me no poço com a louca do Cati e fugir da Boitatá que nunca vi, arrepiando-me diante do negro degolado, que olha sem olho, pisa com pés sem peso e arqueja sem bafo, para depois vê-lo dissolver-se, sombra na sombra da noite. E sair de tudo isso rindo como quem viu passarinho verde.


Berlim, 18 de maio de 2000


Ligia Chiappini
é gaúcha, lecionou na USP, atualmente leciona no Instituto de Estudos
Latinoamericanos da Universidade Livre de Berlim)