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Incidências contemporâneas na relação médico-paciente - Cyro Martins*  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

 

Instituir uma medicina humanística, dentro da realidade social contemporânea, implica em mudanças de estruturas mentais e de técnicas de trabalho. Sem dúvida, uma tarefa dificílima e demorada, exigindo o esforço de mais de uma geração, a fim de propiciar ao médico jovem possibilidades subjetivas e objetivas de adaptar-se a situações novas. As reformulações, quaisquer que sejam as bases de sua ideologia, são sempre objeto de controvérsia. Entretanto, sem medo e modestamente, iniciou-se um movimento, através da ação didática, de integração da prática médica corrente, visando a unidade na variedade. Faz já algum tempo que me bato contra a fragmentação da medicina em feudos, por cujos limites os seus respectivos senhores lutam às vezes encarniçadamente, havendo, não raro, escaramuças de fronteira. Não estou acusando ninguém. Somos todos, consciente ou inconscientemente, proprietários cônscios dos domínios do pedaço de homem que escolhemos para a prestação de certos serviços, mediante honorários adequados e preservados os direitos e a dignidade feudais, aos quais damos pomposamente o nome de ética médica.

No que me diz respeito, devo frisar que a psicanálise, sobretudo após o advento da medicina psicossomática, foi acusada de estar tentando invadir, indevidamente, os demais territórios médicos, numa conduta de sanha imperialista. Entretanto, foram os próprios psicanalistas que se apressaram a atenuar o impacto provocado pelo conceito de medicina psicossomática sobre a chamada medicina orgânica. Os psicanalistas, e até hoje também a maioria dos clínicos, à medida que se aprofundam em seus conhecimentos das emoções básicas do ser humano, tendem a relegar o termo psicossomático por errôneo, já que a sua composição insinua o dualismo corpo-alma, deixando assim a medicina contemporânea, não obstante todos os fabulosos progressos técnicos e sobretudo o achado do inconsciente dinâmico, ainda presa, de certa forma, aos resíduos da concepção medieval do homem. Por isso, o nosso eminente mestre e amigo Angel Garma, já há alguns anos, auspiciou que o vocábulo em questão fosse “substituído por outro, como o de medicina integral ou simplesmente o de medicina, que se considerará como um conceito de totalidade”. Isso resulta numa ampliação do interesse do estudo da relação médico-paciente, enfocada sob uma nova dimensão. Entretanto, o termo psicossomático se impôs e já fez tradição, ajudando os médicos em geral a adquirirem certa visão de aspectos da práxis médica atual sobre os quais não poderemos mais continuar de olhos vendados.

A formação do médico, tecnicamente, tem progredido no sentido de capacitá-lo, sempre e cada vez mais, no afã de esmiuçar a objetivação do sofrimento orgânico. O erro desse ensino consiste na extrapolação dos dados sensoriais recolhidos e da supervalorização dos exames complementares, o que acaba deformando não somente a linha de raciocínio como até mesmo a linguagem do médico, própria, na maioria dos casos, para traduzir em termos fisiopatológicos corretos o mal somático, porém imprópria para auxiliá-lo a compreender o sofrimento do continente denominado homem. Semelhante tipo de assistência médica, que já vem de longe e ganha incremento dia-a-dia, induziu os pacientes a se identificarem com esse procedimento, de tal forma que eles não estranham mais que os seus médicos não os ouçam, desde que lhes peçam exames de laboratório. Curiosamente, dessa maneira os doentes se livram de indagações às vezes incômodas sobre o seu passado e o seu presente, e ainda de algo guardado em segredo consciente ou preconsciente, que é o desejo de tirar benefícios secundários da doença, tais como vantagens econômicas ou atenções da parte de familiares e amigos. Saem satisfeitos da consulta, porque não foram responsabilizados em nada pela sua enfermidade e a absolvição da culpa por ter adoecido se concretiza na receita que leva na mão. Antes, julgava-se uma pessoa enferma. Agora passou a ser um portador de asma, de insuficiência cardíaca, de tuberculose, etc., agravando a tendência à dissociação da personalidade, fato que irá complicar o seu tratamento, não obstante o alívio imediato.

Bem sei que as realidades psicológicas não são facilmente aferidas numa entrevista ou duas. Porém o médico quase sempre poderá fazer algo positivo no sentido duma compreensão em totalidade da criatura humana sofredora que está na sua frente. E na medida em que o paciente se vir compreendido, irá animando-se a olhar com menos medo para dentro de si mesmo e a conhecer-se um pouco mais.

Não ignoro, por certo, que este contexto difere do que é característico do atendimento médico corrente. E a propósito, ocorrem-me algumas perguntas que deverão estimular, não só a minha, mas igualmente a imaginação do leitor. A medicina mudou? Sem lugar a dúvidas, nos procedimentos técnicos e na compreensão mais penetrante do psiquismo do paciente. Portanto, no modo de agir e no modo de pensar do médico. Mas terá a medicina contemporânea condições de enfrentar sem monstruosas deteriorizações, as imposições da previdência social, assim como se apresentam atualmente? Como proceder para contornar essas dificuldades, que necessariamente contaminam a ética e a técnica da relação médico-paciente? E de que forma se efetua essa contaminação? Os agentes patogênicos da relação médico-paciente na medicina previdenciária são a pressa, as remunerações minguadas, às vezes aviltantes, o número excessivo de consultas, as condições ambientais de trabalho inadequadas, entre outras. Daí resultam reações compensatórias do profissional, que a certa altura já nem sabe se é um profissional liberal ou um mero despachante da mercadoria chamada doença, um encaminhador de papéis, capaz de condutas reprováveis, como é o caso das cirurgias desnecessárias, sob o pretexto de estarem agindo de acordo com o princípio de adaptação ao mundo externo. E da parte do paciente, o que observamos? A intimidação, as reivindicações, a pouca vontade de colaborar.

Parece que, nesta conjuntura, os médicos estão buscando uma maneira acomodada de comportar-se, sem, no entanto, sentirem-se cômodos. Pelo menos a grande maioria, porque, a julgar pelo que ouço ao meu redor, predominam as críticas e as queixas.

Esse conjunto de fatores me faz crer que a patogênese da previdência médica já se constituiu num tema que está desafiando a argúcia dos investigadores de problemas sociais complexos do mundo subdesenvolvido. Quanto a mim, limito-me a abordá-lo aqui com modéstia e de refilão. Estamos, na verdade, à procura de uma fórmula que torne plausível a relação médico-paciente, adaptando a ética profissional às limitações que as circunstâncias sócio-político-econômicas determinam. Sinto que a ninguém é fácil assimilar todo esse complexo de inovações imposto ao exercício profissional, apreendendo ao mesmo tempo a natureza de todas as suas implicações. Pelo que me tem sido dado observar, julgo que, nem os que decretam, nem os que baixam as portarias de serviço, nem os que executam ou tentam executar essas determinações administrativas conseguem, na maioria dos casos, conscientizar o que estão fazendo. Incontestavelmente, as modificações da práxis médica decorrentes desse conjunto de exigências burocráticas acarretam alterações patogênicas na relação médico-paciente.

Hoje em dia, no nosso País, existem três categorias de pacientes: o particular, o associado do Instituto de Previdência Social e o indigente. Tanto a primeira como a última categoria estão sendo progressivamente absorvidos pela segunda, com grave prejuízo para o médico, para a profissão médica e para os doentes em geral, e ainda para o avanço científico da medicina. Estas são todas verdades tão evidentes que dispensam qualquer argumentação, tentando comprová-las.

Ainda me lembro do Manual de Patologia Geral, de Roger, com o qual travei conhecimento no 3º ano da Faculdade, em 1930. O mestre francês abre seu livro com a definição clássica: a Medicina é uma ciência e uma arte. Não guardo de memória o conteúdo daquela página, nem disponho mais do precioso manual. Entretanto, creio não errar muito ao atribuir a Roger o conceito essencial de que a arte médica consiste na capacidade que possui o médico de realizar-se criativamente no exercício profissional, guiado pela intuição, que flui da base emocional da relação médico-paciente. E como o saber intuitivo - o clássico olho clínico - vem se desgastando na prática médica à medida que se multiplicam os recursos tecnológicos, convém que, de quando em quando, os médicos se façam, a si mesmos, um chamamento à intuição psicológica, uma espécie de conhecimento sensorial dos estados anímicos próprios e do semelhante. Os recursos tecnológicos de que se utiliza a medicina atual, às vezes abusivamente, de certa forma interfere na relação médico-paciente, inibindo a espontaneidade do raciocínio acerca do caso em foco. Os recursos tecnológicos adquiriram dimensões de mito. Ademais, comunicar-se sempre foi difícil aos homens. E a situação se complica, se de um lado está alguém que se queixa e espera auxílio. Auxílio, esse, que nem sempre temos condições de prestar, pelo menos na extensão desejada pelo paciente.

Com estas breves considerações sobre assunto tão sedutor, quero chamar a atenção para o fato de que é justamente através desse aspecto intuitivo da práxis médica que poderemos estabelecer talvez um ponto de contato dentre a assistência médica diária e o humanismo médico contemporâneo, de inspiração psicanalítica. Com efeito, desde Freud, como ressalta Garma, “a enfermidade deixou de ser a lesão de um único órgão, passando a ser de toda a personalidade”. Assim, com a expressão “humanismo médico”, que não deve ser confundida com humanitarismo nem com filantropia, quero enfatizar que, para ser fecunda em suas conseqüências, a relação médico-paciente deve basear-se fundamentalmente no respeito que devemos à personalidade do paciente. Essa consideração pelo consulente, qualquer que ele seja, pobre ou rico, adulto ou criança, já é, por si só, uma atitude terapêutica, se levarmos em conta que todo doente, não importa a natureza de sua doença, se encontra num estado mental regressivo. A nossa atitude de atendê-lo como gente robustece-lhe o ego, sobretudo porque se constitui num chamamento a brios. Isso não se verbaliza, transpira do estilo da conduta assistencial. E se o médico lhe dá um tratamento paternalista, está lhe fazendo um desserviço, piora a sua situação como pessoa e mais distante ele fica da possibilidade interna de assumir a sua doença. Portanto, o médico precisa alerta sobre certas tendências próprias de identificação com o paciente e tratá-lo como adulto desde o começo, o que às vezes poderá parecer duro, mas na verdade é uma mensagem-estímulo à recuperação da saúde. Fora desses moldes, torna-se difícil a melhora do doente.

A regressão é um processo mental defensivo através do qual o indivíduo tenta evitar a angústia que o assoberba, retornando, no plano psíquico, quase sempre parcialmente, a uma fase anterior da evolução da personalidade, a um dos chamados pontos de fixação do desenvolvimento da libido e do ego. A regressão nem sempre representa um processo defensivo tão eficaz como para deixar o doente livre de ansiedades. O conceito de regressão, em psicologia profunda, pressupõe que, afora casos considerados ideais, o habitual é que as fases infantis do desenvolvimento não sejam totalmente transpostas e elaboradas num processo de canalização para o nível genital e adulto, de sorte que é com relativa facilidade que o homem recorre a padrões de comportamento que permaneceram disponíveis, oferecendo-se como opções de funcionamento de adaptação às contingências que geraram angústia. Entretanto, conforme frisei pouco antes, o retorno psíquico a um núcleo de fixação não representa uma garantia de tranqüilidade. Às vezes sucede o contrário, pois a regressão leva o indivíduo a reexperimentar a angústia característica da fase para a qual regrediu. Por isso se diz, humoristicamente, que o paciente salta da frigideira para cair no fogo.

Estas considerações visam ressaltar que a medicina de massa, de hoje em dia, conseqüência, entre outras causas, da explosão populacional e do subdesenvolvimento, se exerce pondo as populações em condições de dependência externa que agravam a tendência regressiva interna. Ademais, esses fatores estimulam a corrida ao benefício secundário da enfermidade.

Como analista, não poderei deixar de abordar, ainda que sucinta e superficialmente, o fenômeno psicológico básico da relação médico-paciente. Refiro-me ao complexo emocional transferência-contratransferência. Transferir, em psicanálise, significa reviver uma situação ou muitas situações ou uma subestrutura emocional do passado no presente, com a mesma força afetiva, tendo um objeto referencial definido, no caso o médico e mais especialmente o psicanalista. Digo mais especialmente o psicanalista porque o clima de trabalho em psicanálise é especificamente o transferencial-contratransferencial. No calor transferencial, o paciente derrama toda a carga afetiva cuja abertura foi impedida pelo conflito. Essa disponibilidade repetitiva, característica da criatura humana, se deve a um anseio de expansão, motor de um processo emocional interrompido. E se repetem, ao longo da existência, na convivência cotidiana e na relação médico-paciente não somente os anseios de amor, que se originam de Eros, personificação da força da vida e dos instintos libidinosos, mas também os sentimentos provenientes de Tânatos, a divindade grega que personifica o instinto de morte, mola mestra da hétero e da autodestruição.

Em síntese, no tratamento psicanalítico não se revisa minuciosamente a biografia do paciente, a começar pela mais tenra infância, como fantasistamente se supõe. Não. Ocorre muito mais do que isso. Em vez de recordar, o paciente repete com o seu analista os seus antigos padrões emocionais, o que nos propicia conhecê-lo em profundidade e conduzi-lo à percepção interna que tecnicamente chamamos “insight”, isto é, a uma visão de seus estados anímicos latentes.

Desde que nascemos, quiçá desde a vida intrauterina, a interpenetração das funções biológicas e das experiências vitais vai armando o nosso psiquismo. Como decorrência, organizam-se os tipos de conduta do indivíduo, com base em afetos, fantasias, representações, etc., que se exteriorizam, nos atritos do dia-a-dia, através duma maneira de ser mais ou menos definida e que finalmente configuram o retrato moral da personalidade de cada um. Dessa forma, de cada vez que nos vemos solicitados a reagir ante qualquer estímulo, interno ou externo, esses modelos, que fazem parte de nós mesmos, que nos integram, vêm à tona. São as motivações dessa conduta, mais ou menos arbitrárias e neuróticas, ou apropriadas às circunstâncias, que constituem o material de trabalho para o aqui e agora do campo analítico.

Com o que acabo de expor quero singelamente esclarecer o significado da conduta humana através de um conceito de alcance mais amplo. Com efeito, a conduta não é uma repetição mecânica de clichês, porém compreende a complexidade dos sistemas vitais e um mínimo de criatividade ante as solicitações do cotidiano, de origem interna ou externa, abrangendo todas as áreas da personalidade - a mental, a somática e a espacial. Fiéis a este conceito, concebemos o quanto é vária, na sua continuidade, a reação humana nas respostas aos desafios da vida.

Ainda como complemento deste tópico, desejo elucidar o significado de um termo que empreguei acima. Trata-se da palavra composta “contratransferência”. Transferência já sabemos o que é. Vejamos, pois, ainda que brevemente porque se trata de tema de alta especialização, o sentido deste termo. À primeira vista, dá uma impressão errônea de ser um sentimento adverso aos sentimentos transferenciais. No entanto, não passa do registro duma corrente afetiva comum na conversação entre duas ou mais pessoas, tanto quanto a transferência. Fala-se em contratransferência para expressar que é uma resposta à transferência, sem ser necessariamente contra. Não obstante, às vezes o é, transformando-se num elemento perturbador do convívio entre as pessoas. Transportando, agora, estas noções para o âmbito do nosso tema, a relação médico-paciente, podemos dizer que a contratransferência é simplesmente a transferência do médico para o seu paciente. Poderá ajudar ou perturbar esse relacionamento. Ajuda, quando essa reação emocional serve de guia para a compreensão do caso na sua fusão psicossomática. Perturba quando a transferência do paciente atinge resíduos infantis não superados da personalidade do médico e então a contratransferência desempenha um papel deformador do pensamento médico em relação ao caso, às vezes na sua totalidade, mas no referente a determinados aspectos do comportamento do paciente. Daí a importância do médico conhecer-se a si mesmo em profundidade.

Deixo aqui, no ar, apenas algumas referências, que julgo capitais, em torno do tema “relação médico-paciente”, focado do ângulo do humanismo médico contemporâneo, cujos marcos referenciais se originam do pensamento psicanalítico.

Modernamente, fala-se cada vez mais em previdência social e em socialização do atendimento médico, o que evidencia a preocupação, sincera ou não, certa ou errada, dos administradores dessa área em formular um novo tipo de assistência na esfera da saúde pública, capaz ou não de orientar e tranqüilizar o médico, em especial o jovem recém-saído da Faculdade, em meio à crise da práxis médica atual. Pairam sobre esse panorama sócio-cultural da nossa profissão inúmeras interrogações. E estas procedem das massas maltratadas pela instituição previdenciária e da consciência justamente reivindicante da classe médica lesada nos seus interesses. Precisamos ter sempre em mente esse fator inestimavelmente importante para um bom exercício da medicina, fator que não encerra uma meia-verdade, mas uma verdade inteira: o médico necessita ganhar a vida com sua atividade profissional!

Se considerarmos a grave realidade dos nossos dias, constataremos que habitualmente se defrontam, nos hospitais e ambulatórios da previdência, médicos irritados porque trabalham muito e ganham pouco, com enfermos irritados pela humilhação do massacre das filas. Sendo assim, como o é, de que jeito se irá estabelecer uma ligação emocional produtiva na relação médico-paciente? Esta é uma das interrogações a que me referi antes, sem dúvida a de implicações mais ramificadas.

Uma das principais preocupações de certos centros médicos, alguns de prestígio mundial, reside no fato de procurar estabelecer ou retomar a linha da relação médico-paciente em pautas humanísticas. O humanismo médico contemporâneo não envolve uma tentativa de ressuscitar o médico de família do século XIX. Isto seria confundir humanismo com humanitarismo. O médico de família pertence ao passado, é uma figura histórica. Seus padrões profissionais eram essencialmente românticos. Os nossos são realistas. Tratamos de integrar, no exercício profissional, os recursos tecnológicos com a compreensão científica da personalidade do paciente, em todas as especialidades.

Eu poderia dar por encerrada aqui a minha contribuição para este livro, Entretanto, tecerei ainda algumas considerações de ordem sócio-cultural, pertencentes à configuração do mundo em que vivemos, muito mais vasto do que a nossa cidade, é a aldeia global. Tudo indica que a civilização ocidental vive uma fase de transição. E talvez nem somente o ocidente, porque, pelo que se lê, pelo que se ouve e se vê no vídeo, o homem contemporâneo vive sob uma atmosfera carregada de forças ameaçadoras, conturbando o seu sentido de realidade externa, têmporo-espacial, e o de realidade interna, atemporal, que pertence ao domínio da fantasia. Os fatores desencadeantes desse ambiente moral, cujas conseqüências se ampliam inconscientemente através das crenças mágico-animistas ressuscitadas, são, num círculo psíquico mais imediato, o temor da violência e, noutro plano, os efeitos catastróficos da explosão populacional.

Quando, a partir do Renascimento, a Filosofia e a Ciência começaram a coordenar mais apuradamente os princípios indispensáveis para o homem chegar ao conhecimento íntimo dos segredos da natureza, entrou em declínio definitivo a imagem do homem inocente, do homem paradisíaco e da bem-aventurança edênica. Esse dado convincente de realidade objetiva adquiriu, na evolução da cultura ocidental, extraordinária significação persuasiva contra os criadores de utopias, contra a desrealização da mente humana. Agora, a nossa vida se orienta mais por uma antevisão do futuro do que por um retrospecto das tradições. Eis aí um dos fatores influentes do real e do fantástico na mentalidade do homem contemporâneo.

Na esfera das disciplinas básicas sobressai, em escala mundial, a produtividade do proletariado intelectual da pesquisa, graças à posse de métodos norteadores e ao domínio de técnicas operacionais. Na atividade profissional propriamente dita, valemo-nos de marcos referenciais teóricos, estabelecidos pelos expoentes. Partindo de observações empíricas, as teorias foram avaliadas pela experimentação, submetidas ao crivo específico de cada ciência, polidas nas suas inadequações, até finalmente cristalizarem no rigorismo de um esquema conceitual. Sobreveio, então, uma mentalidade otimista. Faz poucas décadas, parecia pacífico que o poder inventivo do homem solucionaria toda a problemática que surgisse daí por diante desafiando a sua capacidade de raciocínio. E o mito moderno da capacidade ilimitada do técnico substituiu o mito originário do homem feito à imagem e semelhança de Deus. Eis aí uma fantasia de forte influência na mentalidade do homem contemporâneo.

Na esfera das disciplinas básicas sobressai, em escala mundial, a produtividade do proletariado intelectual da pesquisa, graças à posse de métodos norteadores e ao domínio de técnicas operacionais. Na atividade profissional propriamente dita, valemo-nos de marcos referenciais teóricos, estabelecidos pelos expoentes. Partindo de observações empíricas, as teorias foram avaliadas pela experimentação, submetidas ao crivo específico de cada ciência, polidas nas suas inadequações, até finalmente cristalizarem no rigorismo de um esquema conceitual. Sobreveio, então, uma mentalidade otimista. Faz poucas décadas, parecia pacífico que o poder inventivo do homem solucionaria toda a problemática que surgisse daí por diante desafiando a sua capacidade de raciocínio. E o mito moderno da capacidade ilimitada do técnico substituiu o mito originário do homem feito à imagem e semelhança de Deus. Eis aí mais uma fantasia de forte influência na mentalidade do homem contemporâneo.

Mas sobrevieram surpresas. Diante do problema demográfico mundial, na opinião de Julian Huxley, “o mais importante e o mais grave de todos os problemas que atualmente pesam sobre a espécie humana”, que orientação nos servirá de bússola? Serão suficientes respostas técnicas? Manobras políticas? Mudanças de regimes?

A humanidade, que já vinha assustada por todas as ameaças da era nuclear, começa agora, paradoxalmente, a entrar em pânico em face do relativo baixo índice de mortalidade observado em certas áreas do globo, assim como do número excessivo dos que nascem e sobrevivem, e dos longevos. Certamente, estamos ainda dentro da órbita do nosso tema “relação médico-paciente”, abordado já não apenas do ponto de vista técnico, porém através do prisma cultural. Diante disto, deveremos cruzar os braços, numa atitude resignada de reconhecimento da nossa impotência? Consideremos. As descrições dos fenômenos manifestos dessa problemática psico-sócio-cultural, baseadas predominantemente nos números que a estatística fornece, são em geral atraentes. As considerações finais costumam ser de estilo aparentemente objetivo e preciso. E quem as lê chega à conclusão de que, na complexidade técnico-científica atual, a estatística é o máximo, o computador também é o máximo, os tecnocratas o cérebro do mundo. E tem-se a impressão de estarem à vista as medidas preventivas e curativas do mal. Entretanto, se nos dispusermos corajosamente à pesquisa e se formos, com o auxílio do método analítico, de fora para dentro, à medida que nos afastarmos da realidade tangível e transpusermos os limites da interioridade, penetraremos na esfera subjetiva das vivências profundas e logo constataremos, entre assombrados e perdidos que, no reino das fantasias inconscientes, onde opera a flutuação constante das emoções e dos impulsos instintivos, a pluralidade das dimensões simbólicas e das imagens alusivas é a nota dominante. É sobre essas sutilezas da atividade intrapsíquica, absolutamente inconsciente, que deverá incidir a investigação do destino humano. E igualmente a investigação, em profundidade, da essência emocional da relação médico-paciente.

Os órgãos responsáveis pelos rumos das nações convocaram a Medicina para defrontar-se com esta esfinge do século XX: o controle da natalidade! Acontece que, sentida ao calor da compreensão humanística, a história das vicissitudes da feminilidade, entrevista em sua projeção no tempo, adquire, na fantasia humana, dramatizações de aventura extraordinária. Na contemplação desse painel, o que mais nos chama a atenção é o caráter anti-instintivo e anti-maternal que a sociedade contemporânea adota por vezes. E se levarmos em conta o contraste entre essas duas atitudes e a procriação descomedida que redundou na explosão populacional dos últimos decênios, então teremos de pensar nas conseqüências dessa antítese, e uma delas é a violência dos nossos dias.

Assim, pois, todo o empenho do homem contemporâneo deverá ser no sentido de extrair condições de vida no intercâmbio dialético das contradições em conflito no presente. E esta tarefa é para já. Não admite espera. Estamos dentro do processo de exigências prementes da realidade, somos, com os nossos desencontros, a sua própria substância. Seus fenômenos bio-psico-sócio-econômicos assinalam a transição da humanidade atual. E, em face desta realidade, temos o direito de temer a eclosão de ansiedades psicóticas coletivas, alimentadas pela fantasia básica de fim de mundo, à medida que as massas, de escassas defesas intelectuais e afetivas, viverem mais imediatamente sob o impacto da ameaça nuclear, da recentíssima bomba de nêutrons e da explosão populacional, sentidas, essas catástrofes, no âmbito abrangente de suas gigantescas conseqüências nefastas. Essas expectativas de calamidade universal exacerbam tanto o sentimento de culpa persecutória, quanto o pressentimento da mais absoluta insegurança. Mas a essas emoções de espanto, o homem, que apesar de tudo teima em ser homem, contrapõe uma fantasia de salvação, composta do senso de humor de uns, da intuição poética de outros e do saber científico de uns poucos, destinada a desviar a agressividade humana de seus rumos catastróficos e a canalizar suas energias para outros destinos, o de reparar, o de sublimar, o de construir, o de amar, enfim, proporcionando aos povos novas equações de entendimento mútuo, para que a fantasia que amanhecerá com o ano 2000 fulgure atraente, sem ser uma simples miragem.

 


Nós, médicos, por intermédio dos aspectos práticos da arte de clinicar, todos os dias, não obstante as condições muitas vezes desfavoráveis do nosso trabalho, estamos a postos, trabalhando obscuramente, através de um bom vínculo emocional com os nossos pacientes, para dar a nossa modesta contribuição em favor da não-violência.

Introdução.


In: MARTINS, Cyro (org). Perspectivas da relação médico-paciente.
Porto Alegre, Artes Médicas, 1979. Obra reeditada em 2011 pela ARTMED. 


* Médico Psicanalista e escritor. Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Analista didata.