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Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

Contemplando o quadro complexo do pensamento médico do presente e deixando me atrair, sem prevenção, pelas linhas que o singularizam, encontrei-me com as Perspectivas Humanistas da Medicina Contemporânea. Seguindo por esse caminho, deparei em breve com o panorama amplíssimo configurado pelos relevos dos conhecimentos fundamentais da cultura do nosso tempo, indispensáveis para a compreensão, um pouco mais profunda do que aquela a que nos habituou a rotina, do saber médico atual.

Este ato reflexivo representa um chamamento à humildade intelectual, no nosso afã de domesticar as forças da natureza, as que estão fora e as que estão dentro do homem.

Esta será uma singela aproximação do tema. Como roteiro, lançada no plano especulativo, guiou-me a pergunta: quais as características do humanisno médico contemporâneo? Também poderíamos formular de outro modo a mesma interrogação, infundindo-lhe um sentido de fim: em que consistem os objetivos do humanismo médico?

Todos sabem, nestas especulações as respostas quase nunca se apresentam sem rodeios. Assim, começarei recordando que em certas tarefas do conhecimento o conceito de cultura tem livre trânsito. Por exemplo, quando o aplicamos na apreciação dos acontecimentos históricos ou dos fenômenos sociológicos ou antropológicos. Cria-se um certo constrangimento, porém, quando se intenta usá-lo tomando como marcos referenciais os dados que a medicina fornece, como se houvesse um perigo de evaporação da ciência ao penetrar na atmosfera rarefeita das generalidades.

Quando falo em Perspectivas Humanísticas da Medicina Contemporânea, refiro-me primordialmente àqueles pontos de contato da medicina com a linha de luta imemorial do homem pela afirmação e pela preservação de sua personalidade, contra os diferentes domínios que o têm oprimido: o da natureza, os sociais, o das energias primárias do seu organismo, aquelas energias limítrofes entre o soma e a psique, que se chamam instintos. Sobretudo nas últimas décadas, é notória a penetração da medicina, de um lado, no âmbito da civilização, e de outro, no da cultura. Do ponto de vista da civilização, a medicina está contribuindo, como nunca, com o emprego em escala crescente de sua técnica, para a humanização da vida das coletividades. Do ponto de vista cultural, através da investigação em profundidade das emoções básicas do homem, a medicina eleva-se acima de suas preocupações de utilidade imediata e nesse alto nível se confunde com as ciências do espírito, passando a ser também uma disciplina humanista, tal como se entende o humanismo modernamente.

A conceituação de humanismo tem sofrido variações, desde o movimento renascentista contra as servidões feudais até o suspense da era nuclear. Com efeito, escolas filosóficas e correntes sociais diversas têm-se empenhado na busca da formulação perfeita de ideais novos, capazes de orientar o homem em meio à conturbação dos três últimos séculos. Assim, no século XVIII, quem deu as cartas foi o materialismo mecanicista; na segunda metade do século passado, o positivismo; em fins do século XIX e começos do XX, o cientificismo onipotente. No presente, alinham-se, cada qual propugnando a sua reforma do homem, o humanismo pragmático, o humanismo cristão e o humanismo socialista. Os dois primeiros pretendem uma reformulação da concepção do homem, no sentido, respectivamente, de sua posição em face das relações sociais e em face da transcendência divina. Quanto ao último, o socialista, direi, talvez com algum exagero, que advoga uma inversão dos valores vigentes, como aliás sucedeu com os eruditos revolucionários da Idade Média quando, rompendo barreiras opostas pela sociedade feudal, procuraram alargar seus conhecimentos. Nunca será demais exaltar a significação histórica do gesto daqueles sonhadores que, em pleno torvelinho medieval, voltaram-se para a antigüidade clássica, idealizaram-na e a tomaram como padrão da independência de espírito.

Seja como for, enfocado na Grécia, no Renascimento ou no século XX, a base ideológica de todos os humanismos continua sendo o aforismo do sofista Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas".

As disciplinas humanistas, da Gramática à Filosofia, caracterizam-se pelo seu esforço em compreender o espírito humano. Esforçar-se por compreender é procurar trazer à consciência o lado obscuro da personalidade. E neste compreender vai implícito um ajudar, de tal modo que esforçar-se por compreender o espírito humano significa impregná-lo da sabedoria de vida.

E em que consiste essa sabedoria de vida? Notem, de propósito, não digo filosofia, nem arte de viver.

Essa sabedoria consiste em poder contornar o destino.

Consciente do risco das esquematizações e sem querer simplificar demasiado o que é de natureza complexa, uma das ciências humanistas contemporâneas, de importância crescente, ensina que, sem o conhecimento profundo de si mesmo, o homem tende a passar a existência repetindo os mesmos erros, recaindo nas mesmas desgraças. E como isso acontece, em grau maior ou menor, com a imensa maioria dos seres humanos, generalizou-se a crença de que o destino é inalterável. Essa é a posição mais cômoda, não obstante a sua irracionalidade. Representa a entrega total ao impulso de repetição, sob a égide de Tánatos, o deus grego da morte.

Mas o destino será mesmo inapelável?

Sinto que esta pergunta contém um pouco da vertigem do nada. Isto acontece sempre que tentamos abrir perspectivas rumo à vertente abissal da vida.

Nesse desdobrar constante de situações criadoras, ao claro sol da inteligência, surgiu, no alvorecer do século XX, a ciência humanista a que me referi há pouco, a psicanálise, intermediária entre a medicina e as chamadas ciências do espírito. Num extremo, é medicina pura, no exercício estrito de seu método terapêutico bem especificado. No outro, expande-se numa ramagem de amplos contatos com a cultura. São de Freud estas palavras: "Como psicologia das profundidades ou ciência do anímico inconsciente, a psicanálise pode chegar a ser indispensável a todas aquelas ciências que se ocupam da história das origens da cultura humana e de suas grandes instituições, tais como a arte, a religião e a ordem social... O emprego da análise para a terapêutica das neuroses é apenas uma de suas aplicações e quiçá venha o futuro a demonstrar que não é sequer a mais importante".

Enrique Racker, por sua vez, abordando temas dessa amplitude, afirmou categórico: "Uma ciência que descobriu as origens dos fenômenos anímicos está chamada, evidentemente, a mostrá-los sempre e onde a psique se manifeste".

Estabelecendo agora uma correlação entre os últimos parágrafos e o título deste ensaio, concluiremos facilmente que a psicanálise é a grande via humanista da medicina contemporânea. As perspectivas que nos oferece, como já assinalei brevemente, abrem-se em dois sentidos. Um, na direção das artes, da antropologia, dos mitos, das religiões. O outro se orienta para a atividade clínica, proporcionando-nos uma visão global do doente. E ao apagar as fronteiras das especialidades médicas, arbitrárias mas necessárias na prática, a psicanálise levou para a clínica - evidenciando que a personalidade se revela através das múltiplas expressões que emanam do organismo, sejam verbais, sensoriais, secretoras, motoras ou humorais - o interesse pelas reações humanas em geral, quer se manifestem no fulgor de um olhar, na contração de um músculo ou na luminosidade de um verso. A psicanálise, portanto, nutriu de humanismo o pensamento médico do século e enobreceu o nosso ofício, contribuindo como nenhuma outra teoria para a concepção unitária do homem.

A idéia-guia, criação da nossa época, de que o organismo é um todo integrado e não a soma de suas partes, levou à posição psicossomática. Esse esquema diretor, da prática e da pesquisa, será tanto mais fecundo quanto mais profunda for sua infiltração no espírito das novas gerações médicas. Ainda não tiramos dessa imagem-bússola toda a riqueza que nos poderá dar.

Noutros tempos, dominaram outras idéias representativas, gozando de prestígio no plano cultural próprio da época e influindo na investigação e na prática. Durante séculos, a teoria humoral de Galeno explicou tudo, os fenômenos fisiológicos e os patológicos.

O advento da anatomia, na Renascença, levou os médicos a conceitos mais objetivos e também a uma crença na localização estrita das doenças. Em meados do século passado, com o microscópio, a localização se tornaria mais precisa: as células seriam a sede das doenças. Wirchow foi o deus onipotente da patologia durante meio século. Posteriormente, as idéias de Pasteur, levadas à prática, alterariam profundamente o quadro da morbidade humana.

Empolgada com tantos progressos notáveis, durante bastante tempo a medicina acreditou que, afinal, achara o caminho definitivo e único, que não necessitaria de outra orientação fora da que lhe sugeriam os fatos evidentes. Nesse período, a imagem-guia foi a filosofia do concreto.

Admirável achado, o do antropólogo Hanz Kunz, que denominou antropologia latente a concepção do homem, variável com as idades, sobre a qual repousa a pesquisa em torno dos fenômenos vitais. Noutras oportunidades, já apontei as exemplificações que a psiquiatria oferece dessa antropologia latente. Aqui recordarei apenas que se ensinava até há pouco, e em alguns casos essa noção ainda está operando no meio oficial de certas Faculdades mais retrógradas, que as psicoses se deveriam a alterações primárias do cérebro ou talvez de outros órgãos agindo à distância sobre o funcionamento dos centros encefálicos através de substâncias nocivas, postas em circulação no meio interno. Há cem anos atrás, essa concepção organicista foi sumamente útil porque, a serviço do humanismo materialista, ajudou a expulsar o demônio dos manicômio. Desempenhada essa missão, porém, aquela fantasia básica, como prefiro chamar a antropologia latente, de Kunz, transformou-se num entrave à pesquisa da etiologia das doenças mentais.

As conseqüências daquela imagem-guia do homem, que perdurou aproximadamente um século, atingiram não apenas a medicina, mas a sociedade em geral, determinando uma posição apriorística de incredulidade quanto às possibilidades de recuperação dos doentes mentais. Desse prognóstico de incuráveis e também pela sua condição de incompreensíveis, o que os situava na esfera do sinistro, resultou a exacerbação do núcleo agressivo daquela fantasia básica, propulsora inconsciente da ação, culminando no plano terapêutico com o eletrochoque e a brutalidade da lobotomia.

No presente, porém, em harmonia com o contínuo crescimento do saber, a medicina evoluiu na sua concepção do homem, inspirando-se nas fontes biológicas do instinto da vida e nas novas realidades que passou a sentir no indivíduo e na sociedade. Dessa posição originaram-se condutas mais flexíveis, menos subordinadas às técnicas desumanizantes. Concomitantemente, atenta ao ritmo acelerado do progresso da ciência em todos os campos, característica incontestavelmente a mais marcante da história contemporânea, atualizou o seu equipamento e as mãos hábeis dos cirurgiões passaram a fazer parte do instrumental construtivo que aperfeiçoa o mundo.

Os avanços das técnicas converteram a medicina numa disciplina de especialistas, vangloriando-se os médicos, quase, pelo fato de ignorar por completo o labirinto do vizinho. Com efeito, impossibilitados de assimilar e logo incorporar à sua prática toda a imensa complexidade da Genética, da Bioquímica, da Biofísica, da Psicologia profunda e ainda da Biossociologia moderna, bases da medicina científica dos nossos dias, os médicos, na sua grande maioria, assumiram a defesa cômoda da negação e cada qual passou a desfrutar, canibalisticamente, do seu pedaço de homem.

Quero salientar, para evitar equívocos, que não sou contra as especialidades, o que seria ingênuo. Qualquer que seja o setor médico que examinemos, chegamos sempre à conclusão que o seu domínio minucioso e preciso é absolutamente impraticável ao não especialista. Entretanto, para que este não se esterilize na faixa onde exercita suas aptidões, é óbvio que deverá esforçar-se por alcançar aquela eminência mínima de onde possa divisar a sucessão dos fatos em medicina. Do contrário, merecerá o epíteto gracioso de "sábio néscio", de Victor Hugo, dirigido, aliás, menos à figura do médico do seu tempo, do que aos fanáticos da química e da física.

A realidade, porém, é que, no terreno da investigação, o gênio individual cede terreno às equipes sem gênio que fazem a ciência andar nos laboratórios de hoje, numa labuta cansativa e obscura, obstinada e sem glórias. Portanto, sem heróis.

Complementando o que acabo de dizer, lembrei que foi a partir do Renascimento que a Filosofia e a Ciência começaram a coordenar mais apuradamente os princípios necessários para chegarem ao conhecimento íntimo dos segredos da natureza. Criaram-se, assim, aos poucos, os métodos. Modernamente, não se concebe ciência sem método. E como a posse do método em muitos casos é despersonalizante, chega-se à conclusão paradoxal de que o progresso científico se tem feito à custa do desgaste continuado do humanismo dos pesquisadores, desde a Renascença. "Uma das grandes conquistas da ciência - escreve Aldous Huxley num de seus últimos livros - é ter criado um método que atua quase independentemente das pessoas que o seguem".

A medicina, por certo, não poderia fugir deste contexto. Afora o terreno das disciplinas básicas, onde sobressai a operosidade do proletariado intelectual da pesquisa, graças à posse de um método, na atividade profissional propriamente dita, na qual o objeto da atenção não é mais passivo - cadáver, rato ou rã - além do método, valemo-nos de uma imagem-guia, iluminando o nosso caminho. Partindo de observações empíricas, essa imagem foi trabalhada pela experiência, polida nas suas asperezas, até cristalizar-se na simplicidade de um conceito. Essa imagem-guia é uma síntese das idéias médicas, que recobraram o impulso dinâmico na compreensão dos fenômenos concernentes à unidade mente-corpo, concepção que ampliou enormemente as possibilidades de aplicação clínica das ciências médicas.

Não obstante a afirmação sarcástica de Sócrates de que os gregos estavam mais atrasados que os bárbaros da Trácia, por não atentarem ao fato de que, sem que se trate a alma, não se pode curar o corpo, e que o ser humano deve ser considerado como um todo, só foi possível a incorporação da medicina psicossomática ao esquema das cogitações habituais do médico moderno, depois que um número considerável de especialistas dominou perfeitamente o método psicanalítico de pesquisa do psiquismo inconsciente. Desde então, a concepção psicossomática constituiu-se numa das perspectivas humanistas da medicina contemporânea, pois interroga o homem na sua totalidade, sem preconceitos, isenta de compromissos quer com o monismo materialista, quer com o dualismo de inspiração mística. No diálogo com o doente, procuramos captar o conteúdo emocional da sua doença, pois a experiência demonstrou que, atrás da função orgânica perturbada, está o distúrbio permanente da estrutura caracterológica. Essa visão do todo abrange o indivíduo enquadrado no seu meio familiar, social e de trabalho. Do contrário, teríamos uma visão parcial da doença do nosso paciente. Esta maneira de fazer medicina é um processo em marcha, suscetível de correção, como todas as imagens-guias que a precederam.

Ante esta mudança de concepção da doença na medicina de hoje, levanta-se, de um lado, o temor da superestimação das influências psíquicas e, de outro, que se crie um novo mito, o mito do todo, capaz de embaciar a visão do detalhe significativo. Não obstante, as perspectivas humanistas da medicina contemporânea poderiam ser definidas dizendo-se que, paralelamente ao muito que já se conhece do organismo, vimos sabendo cada vez mais do homem.

Passemos a enfrentar agora um outro dualismo, o indivíduo e a sociedade, procurando ver em que medida a medicina contribuiu para situá-lo adequadamente no quadro dos conhecimentos atuais das ciências do homem. Esse problema foi também uma das heranças culturais do século XIX, em cujo último quartel adquiriu relevância, sob a forma de polêmica entre psicologismo e sociologismo, que se apresentavam como extremos opostos irreconciliáveis. O primeiro supervalorizava as manifestações individuais, negando sentido de unidade aos grupos. Para o segundo, a conduta dos indivíduos era um reflexo passivo do seu ambiente social. Esses termos foram batizados por autores que se atacavam mutuamente, daí terem passado à história das ciências do homem com um significado até certo ponto pejorativo. Como se depreende, cada escola se esforçava por destacar apenas uma face da realidade que hoje conhecemos sob a denominação dinâmica de dramática humana.

Enquanto o indivíduo e a coletividade foram vistos como entidades abstratas, perdurou a antonomia. Já neste século, porém, à medida que a psicologia e a sociologia se transformavam em perspectivas de enfoque do fenômeno homem, surgia a teoria da interação psicossocial, e isto significa que, modernamente, sociologia e psicologia são complementos na investigação da conduta humana. Sem dúvida, para que se processasse essa evolução do dualismo indivíduo-sociedade para uma concepção unitária, a contribuição das idéias de Freud foi decisiva. De fato, a psicanálise colaborou para o enriquecimento da sociologia, tornando-a uma ciência mais viva, menos apegada a fórmulas, e mais atenta à pluraridade das metas de investigação, ao reconhecer e provar a importância do meio-ambiente na formação caracterológica do indivíduo.

Que a coletividade, o ambiente, familiar e social influem na estrutura da personalidade, sempre se afirmou, direta ou indiretamente, porque sempre se intuiu essa verdade. Mas a forma como se efetivava essa interiorização, essa assimilação do meio pelo indivíduo, era enigmática. Foi a psicanálise que a desvendou, com a teoria do superego. É esta, pois, uma conceituação operacional, de vasto alcance.

Desprezarei os pormenores demonstrativos de tais conceitos. Direi simplesmente: de acordo com o pensamento psicanalítico, todas as manifestações do indivíduo são na realidade sociais. As conseqüências humanistas desta concepção foram os trabalhos de psicanálise aplicada às artes em geral, particularmente à literatura, à sociologia, à antropologia. Tiram-se igualmente ilações de ordem educacional. E num plano mais amplo, aprofunda-se permanentemente a psicanálise da cultura, o que significa a busca das motivações latentes dos grandes movimentos e das realizações de vulto do espírito humano.

Do ponto de vista prático, assistencial, as conseqüências desse pensamento floresceram na psicoterapia analítica de grupo, abrangendo desde os grupos terapêuticos propriamente ditos, de consultório e de hospital, até os grupos operacionais, indo à escola, à fábrica, ao quartel, aos clubes esportivos.

Dentro deste espírito de apreciação larga dos temas médicos do momento mais chegados às humanidades, tomarei dois tópicos de palpitante atualidade. O primeiro se refere ao "Exame de Estado", que em breve estará forçosamente em pauta no cenário nacional, devido à proliferação indiscriminada de Faculdades de Medicina. O outro diz respeito ao "emprego dos anovulatórios".

Foram esses dois títulos que me inspiraram na armação do painel deste estudo. O que me interessa de ambos, agora, é, logicamente, o aspecto humanista. Assim, imagino a futura comissão encarregada do "Exame de Estado" como um órgão pairando acima das preocupações de ordem administrativa, livre e objetivamente entregue à sua grande função social de coordenadora do ensino médico no País. Atenta às modificações evolutivas da morbidade, em alguns setores em conseqüência da ação terapêutica preventiva e curativa, saberá ajustar o ensino às exigências de cada decênio, de acordo com a velocidade crescente do mundo em que vivemos.

Penso, pois, que a função primordial do "Exame de Estado" será a de adaptar constantemente o currículo das Faculdades ao ritmo evolutivo da morbidade. Assim, as teorias e as técnicas que esse órgão vier a julgar obsoletas serão relegadas à categoria dos fatos de interesse histórico. Ao mesmo tempo serão postos em relevo os fatos de atualidade da patologia e os entrevistos para o futuro imediato. Subordinados a essa orientação e apoiados no conhecimento crescente das inter-relações entre o organismo humano e seu ambiente, bem assim como o conhecimento em profundidade da interação das diferentes instâncias psíquicas, conduzirão, sem dúvida, os norteadores da aprendizagem médica profissional a modificar e estender os quadros nosológicos, responsabilizando por muitos deles a fatores etiológicos recém-descobertos.

Evidentemente, não considero o "Exame de Estado" uma panacéia para todos os males do nosso ensino médico, em boa parte condicionados pela crise atual da Universidade. Entretanto, urge uma tomada de consciência dessa problemática, um projeto ético.

No panorama mundial da morbidade atual, ao lado das doenças degenerativas, tão enfaticamente chamadas doenças da civilização, alinham-se com certa predominância as de manifestações sintomáticas orgânicas mas de causalidade psicogenética. E logo, sobressaindo notavelmente, as doenças mentais, sob todas as formas: psicoses, neuroses, perversões, toxicomanias, traumatofilia.

Recordo estes dados, para salientar a necessidade urgente de atualização do currículo das Faculdades, incluindo o ensino da psicologia médica desde o início do curso. Paralelamente, advoga-se para que o trato com o paciente vivo comece no primeiro ano. Esta exigência se deve à importância cada vez maior que se concede à relação médico-paciente, mesmo nas práticas médicas comuns. Visa-se também, com essa providência, fazer a profilaxia da fixação ao paciente absolutamente passivo, o cadáver das mesas de dissecação e de autópsia. A propósito, baseando-me em Bertran Lewin, lembrarei que no século XIV, na Universidade de Salermo, nos primórdios do ensino de anatomia, os alunos eram obrigados a assistir missa todas as manhãs, em intenção da alma dos dissecados. Com esta prática a Igreja pretendia incutir no estudante a consciência de que aqueles cadáveres um dia tiveram vida.

Seria longo continuar por este caminho. É esta apenas uma referência ao tema do paciente totalmente dócil.

O outro tópico a que me referi diz respeito ao "emprego dos anovulatórios". Naturalmente, abordarei aqui a face do tema voltada para a vida social e psicológica.

Leio em Aldous Huxley: "... durante muito tempo ainda, continuaremos a ser uma espécie vivípara que se reproduz ao acaso". Portanto, diante do problema gigantesco da explosão populacional no mundo inteiro, pareceria que devêssemos cruzar os braços, numa atitude resignada, em vista da nossa impotência. A humanidade, que já vinha assustada por todas as ameaças características da era nuclear, começa agora, paradoxalmente, a entrar em pânico em face do relativo baixo índice de mortalidade e do excessivo número dos que nascem e sobrevivem.

As descrições dos fenômenos manifestos desta problemática, baseadas nos números que a estatística fornece, são em geral atraentes e o leitor as devora com avidez. As considerações finais são objetivas e precisas. E nós, subdesenvolvidamente, chegamos à conclusão, mais uma vez, que a estatística é o máximo, nesta matéria e noutras matérias. Entretanto, se viajarmos de fora para dentro, e digo viajar porque esta é sempre uma caminhada longa, ao transpormos limites de interioridade, penetramos na esfera subjetiva de vivências e logo constatamos, assombrados e meio perdidos, que no "reino do sentido profundo das coisas", onde impera a oscilação constante das emoções e dos impulsos instintivos, a pluralidade das dimensões simbólicas e alusivas é a característica dominante. E sobre essas dimensões deverá incidir a investigação.

Circunscreverei o tema. Os órgãos responsáveis pelos destinos da humanidade convocaram a medicina para defrontar-se com esta esfinge moderna: o controle da natalidade. A soberba desta esfinge é a mesma da grega: decifra-me ou devoro-te!

Por certo, a solução desse problema gigantesco requererá a cooperação de todos os povos e, em cada país, de todas as instituições e classes. Simultaneamente ao preparo emocional das populações para entrar em cheio na era dos anticoncepcionais, novas formas sociais terão necessariamente que ser criadas, a fim de amoldar a espécie humana a condições que lhe permitam continuar existindo. Comigo, seguramente que a maioria dos que me lêem pensava até há pouco que a criação dessas formas, que escapam à alçada da medicina, seria tarefa das próximas gerações, a começar talvez aí pelo ano 2000. Mas já estamos dentro desse processo histórico, somos a sua substância. Por isso a medicina, convocada, não podia omitir-se da abordagem técnica e da consideração cultural destes fatos bio-psicossociais, que estão assinalando o fim de uma época e o começo de outra.

Sem recorrer a grandiloqüências, tem-se o direito de temer a eclosão de uma vivência coletiva de fim de mundo, à medida que as populações viverem mais imediatamente sob o impacto da ameaça nuclear e da explosão populacional.

Um pensamento de Augusto Comte, que foi moeda corrente no nosso meio, ao tempo em que os líderes do partido majoritário do Rio Grande do Sul adotavam a sua doutrina política, dizia que "os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos". No meu entender, o filósofo de Montpellier quis destacar, com essas palavras, a elaboração, no comportamento humano, do sentimento de culpa em relação aos antepassados. Agora, estamos no limiar de uma era em que a culpa provavelmente se relacionará mais com o futuro do que com o passado, com os que não nascerão do que com os mortos. Tomando inconscientemente essa vivência angustiosa do momento histórico como uma humilhação instintiva, a humanidade realizará - quem sabe? - uma identificação projetiva em massa, na qual todos projetarão nos espectros dos não concebidos o seu próprio temor de aniquilamento. E passada a fase de perplexidade, poderá desencadear-se uma conduta extremamente regressiva, motivada pela exacerbação das ansiedades persecutórias mais primitivas, sem precedentes na história, com o risco do apelo à defesa psicopática da monstruosa atuação nuclear.

Não mantive intenção de carregar nas tintas. Acontece, porém, que, nos dias que correm, as tintas já fluem carregadas da própria fonte. E a fonte é o espírito da época.

Quando se sugere aos médicos que, além de profissionais, sejam também humanistas, isto não significa uma solicitação para que se dediquem mais aos assuntos gerais, à temática do permanente no homem, e descurem suas preocupações de ordem técnica, seus conhecimentos de aplicação imediata. O que dessa forma se está insinuando é que, não obstante a estrita atividade profissional, se mantenham atentos às vibrações da sua época, que poderá ser, conforme a expressão de Ortega y Gasset, de grandeza ou de rotina. A nossa é de grandeza, porque é decisiva.

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Cyro Martins.
In:A criação artística e a psicanálise. Porto Alegre, Sulina, 1970, p. 61-76.

 

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