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FANTASIA E REALIDADE DO HOMEM CONTEMPORÂNEO | Imprimir |  E-mail

Cyro Martins


TEMPO DE GUERRA E EXPLOSÃO POPULACIONAL

No estado atual da transição, o homem vive sob uma atmosfera carregada de forças ameaçadoras, conturbando o seu sentido de realidade externa, têmporo-espacial, e o de realidade interna, atemporal, pertencente ao domínio da fantasia. Os fatores principais desse ambiente moral, cujas conseqüências se ampliam inconscientemente através das crenças mágico-animistas ressuscitadas são, num perímetro psíquico mais imediato, o temor da guerra nuclear e, noutro plano, os efeitos catastróficos da explosão populacional. Esta proposição corresponderá à realidade objetiva ou será apenas uma ficção, correspondente a um sentimento autista de fim de mundo?

ALGUNS PAINÉIS HISTÓRICOS

Aqui, como noutros enfoques de processos psicossociais, a consideração de painéis históricos ajudarão, pelo menos assim o espero, a compreensão em profundidade de alguns aspectos peculiares do viver do homem atual. Antes, porém, cabem algumas reflexões, que entendo de certa transcendência, porque abrangem disposições inconscientes no nível de fantasia. As mudanças de atitude em face do mundo que vicissitudes e progressos técnicos e intelectuais, próprios do século, impuseram à mentalidade coletiva, através dos mecanismos de projeção e introjeção, “uma seqüência de reações adaptativas”, avultam em primeira linha. Essas modificações, de existência e de essência, assumem aspectos positivos e negativos. Os negativos resultam da incapacidade das massas populares de se defenderem dessas influências traumatizantes de tais alterações do regime de vida, no que têm de causadoras de ansiedades depressivas e ansiedades paranóides. Reativamente, houve, por um lado, uma intensificação do pensamento lógico e, de outro, um reforço do narcisismo, acompanhado de um rechaço dos objetos. Mas os apelos racionais só aparentemente tocam o modo de reagir aos estímulos externos, sem conseguir um avanço real no sentido de serem capazes de aliviar angústias das populações.

GUERRA NUCLEAR - SUPERPOPULAÇÃO

Postas estas breves considerações em nível de realidade e de tensão e fantasia coletivas, intentarei, a traços largos, o registro e a compreensão de alguns painéis históricos, condizentes com o nosso tema, isto é, enquadrados nos marcos referencias “guerra nuclear - superpopulação”.

Em 1938, logo após a passagem de Freud por Paris, rumo a Londres, um ensaísta francês, Gaston Rageot, escreveu: “Freud é um romântico vindo das profundidades do instinto”. A título de ilustração desta afirmativa, citarei um tópico da carta de Freud a Romain Rolland, de 1926: “Dadas as nossas disposições instintivas e o nosso meio circundante, o amor ao próximo deve ser considerado tão indispensável à sobrevivência da humanidade quanto a tecnologia”.

Em contraste, li na imprensa diária de 1971 que o advogado de defesa do tenente Calley, responsabilizado pela matança de My Lai, perorou proclamando que o seu constituinte e os demais soldados da Companhia Charlie, que participaram da mesma operação, “são todos bons rapazes norte-americanos que foram treinados para matar, enviados à Indochina para matar e receberam ordens para matar” e que, portanto, “acreditavam que sua missão era essa”. Esta notícia, lida distraidamente e encarada como uma crueldade a mais entre os horrores genocidas de rotina, sem o menor intento de estabelecer nexo determinístico de efeito e causa, por certo não provocou arrepios ao leitor comum.

HOMICÍDIO TORNADO LÍCITO

Mas eu senti nesse episódio e nessa defesa mais uma evidência do conceito de Bouthoul, o sociólogo francês que no último quarto de século se tornou proeminente, embora não tanto como mereceria, pelos seus estudos sobre As Guerras, enfocadas de ângulos originais. Assim, Bouthoul afirma que “a guerra é o homicídio organizado que se tornou lícito”. Eis aí o enfoque central do sociólogo. Originou-se da argúcia do pensamento científico para captar e discriminar a realidade subjetiva profunda do comportamento do homem em coletividade, nos seus aspectos mais destrutivos. Essa concepção de Bouthoul é de alcance global, pois não somente abrange a fenomenologia manifesta da guerra, como incita também a investigar sua gênese e o evoluir de seus dinamismos latentes na fantasia.

RECORRÊNCIA DO FENÔMENO GUERRA

No colégio, ao lermos nos compêndios convencionais de história que entre os indígenas a guerra era a ocupação principal, experimentamos ingenuamente uma sensação de triunfo sobre os bárbaros. Mas, à medida que crescemos e a madureza vem chegando, esse sentimento se esvai. Na verdade, se tomarmos, não os tempos egípcios, gregos ou romanos, nem mesmo o século XIX, porém o nosso ultracientífico e tecnocrático século XX, o que verificamos de mais saliente no panorama histórico das nações é a recorrência do fenômeno guerra e o empenho a fundo de seus orçamentos para adquirir armas com que enfrentar a guerra em vigência ou a que é sempre possível estourar.

Dispenso-me de insistir aqui na feição idealista e mítica das guerras, baseada na negação da verdade subjacente dos fatos.

Quarenta anos depois da primeira confrontação de Freud com o tema, começaram a surgir muitos discípulos seus, atualizados, preparados para uma concepção psicanalítica da guerra. Os enfoques de diferentes analistas configuram uma opinião doutrinária convincente. Penso que eles apreenderam a essência do potencial destrutivo das funções psicóticas da guerra. Se faço referência especial a funções psicóticas é porque se admite a existência de funções realistas, que em geral servem para mascarar as primeiras.

ERA DE EXPLOSÕES

E agora, antes de apontar de passagem alguns dos mais relevantes conhecimentos humanísticos básicos da nossa época, quero salientar que vivemos numa era de explosões. Uma delas é a explosão verbal, que transformou meios positivos de comunicação entre os homens em fatores desumanizantes, perturbadores da evolução cultural. Pela passividade a quem procuram reduzir a mente humana, vê-se que sua meta é a de rebaixá-la a um nível regressivo ótimo para receber influências nada significantes. Os peritos da propaganda aturdem e vencem pelo martelar retórico e constante. exercendo uma pressão despersonalizante sobre o ouvinte ou o leitor. Com essa técnica distorcionista, às vezes tão sutil que parece traduzir realidades concretas, contamina-se de inverdades a imagem cotidiana da nossa experiência, tornando progressivamente mais confusa a visão transitória da contingência histórica. Ao leitor de jornais, ao radiouvinte ou ao expectador do vídeo ou do cinema, a sociedade de consumo sempre está vendendo algo, na base sublimar da insinuação, do cigarro ao carro último tipo, do Nirvana psicodélico às fúrias nucleares. Graças ao insight psicanalítico do inconsciente humano, a conotação do vocábulo guerra está agora sujeito a outras concepções que não as tradicionais. Refiro-me às motivações inconscientes, mais poderosas e menos reversíveis do que as racionalizações que influem na preparação, na eclosão, na sustentação e na justificação das matanças coletivas. A pesquisa das motivações abissais da guerra representa um avanço cultural ao elevar a espécie à sua condição humana, porque situa o homem na posição ambígua do dramático, no qual o cômico e o trágico se intercalam, aguçando a sua faculdade crítica e ajudando-o, portanto, a elaborar o próprio destino.

GUERRA É ANTICULTURA

Se a guerra significa uma tomada regressiva de posição psicótica, ela é a própria anticultura, no sentido pleno do termo. Muitos psicanalistas já se ocuparam deste enfoque, examinando seus mecanismos fundamentais e a interdependência das causas em ação. Aparentemente, nada mais sobraria por esclarecer dos fatores genéticos dos fenômeno guerra para fins de estudos psicodinâmicos. No entanto, se adotarmos uma posição humanista, receptiva às sugestões mais essenciais que o dia-a-dia carreia acerca do tumulto contemporâneo, então talvez nos seja possível descobrir ou redescobrir valores e formular ou reformular leis situando o complexo sociocultural em categorias de pensamento que se ajustem melhor ao empenho de poucos pela genuína emancipação do gênero humano, emancipação essa fundamentada no respeito devido à personalidade alheia, de indivíduo a indivíduo, de nacionalidade a nacionalidade. Assim, sem acentos carismáticos e apoiados num equilíbrio estrutural com fundamento em áreas das ciências do homem, será factível, talvez, conduzirmos os problemas de interação do complexo cultura-sociedade com os indivíduos, através de uma nova concepção de humanismo, o humanismo psicanalítico, como um ideal de aperfeiçoamento social. Seria esta, talvez, a mais generosa das fantasias de um punhado de homens contemporâneos.

OS DADOS DA PSICANÁLISE

Entretanto, surgem dificuldades nas esferas intelectuais, o que já deveria pertencer ao passado, quando se intenta exigir, como marcos referenciais para generalidades humanísticas, os dados que a psicanálise proporciona, como se houvesse uma ameaça de evaporação da densidade científica ao penetrar a especulação na atmosfera rarefeita das fantasias inconscientes, na suposição de que penetramos num reino fora do alcance do investigável aos transpormos a ponte entre os conteúdos da consciência e os processos mentais inconscientes. Por outro lado, não há dúvida que a polissemia da palavra fantasia faz dela um termo sujeito a equívocos, pouco consistente para explicações científicas fora da psicanálise. Demais, convém lembrar, quando em psicanálise nos referimos a fantasia não o fazemos com um sentido de fuga da realidade, como na literatura em geral. Pelo contrário, sabemos que o ego se ampara em fantasias inconscientes para uma elaboração simbólica mais rápida e mais adaptados a estímulos internos e externos.

AS PERSPECTIVAS HUMANÍSTICAS

Contempladas do ângulo psicanalítico, as perspectivas humanísticas referem-se essencialmente àqueles pontos de contato da psicologia profunda com a linha evolutiva do homem, que se efetua sob o influxo constante do esforço pela integração e preservação de sua individualidade consciente, contra os imperativos que nunca lhe deram quartel: os da natureza, os das energias primárias do interior do seu próprio organismo e os culturais, em seus diferentes estágios. Nas últimas décadas vem se acentuando a colaboração da psicanálise no âmbito da civilização e no da cultura. Tomando-se a perspectiva da civilização, constata-se que a psicanálise já está influindo e que poderá a influir com maior alcance, dentro de alguns anos, por meio do emprego em escala crescente de suas técnicas de aplicação no tratamento e na profilaxia mental, abrangendo desde os cuidados emocionais da gestante até as formas mais elaboradas de adaptação aos planos realistas para o futuro da espécie, por intermédio da aplicação de seus princípios à educação, à ação da psiquiatria dinâmica na comunidade e pela análise propriamente dita de pessoas influentes na sociedade e a psicoterapia analítica de grupo.

O ACERVO TRAZIDO PELA PSICANÁLISE

Culturalmente, verifica-se que, através da investigação em profundidade das emoções básicas do homem, a psicanálise trouxe à cultura um acervo de universalidade como nenhuma outra das ciências do espírito nutridas pelas velhas dimensões greco-romanas, que, ao longo dos séculos, se deixaram contaminar, em suas agonias e dignidades, de paixões e interesses limitadores. A contribuição da psicanálise para a renovação do humanismo, por meio da integração da sua experiência de quase cem anos, em que se funda, às bases norteadoras das ciências do espírito, que primam pela renovação constante, se impôs sobretudo pelo alijamento da proeminência do divino, em benefício duma visão científica do psiquismo, levantando problemas de diferentes ordens de magnitude, que exigem novos esquemas de adaptação do homem à sua vida de relação. Esta é a característica por excelência do humanismo psicanalítico, porque, neutralizando o divino como fator determinante, único e exclusivo, da causalidade existencial, elimina simultaneamente crença milenar na fatalidade do destino, entrando em conflito com a ética existencial grega.

O FENÔMENO GUERRA

Agora, deixando de lado muitos autores, encaremos, sucintamente, o fenômeno guerra. Freud via a raiz biológica da guerra na agressividade instintiva. Não obstante, porém, a chancela de fenômeno natural que parece conceder-lhe, Freud proclama pacifista, experimentando “uma intolerância constitucional” à guerra. Em síntese, para Freud, a guerra, em cujos cenários se esbatem as exigências éticas e estéticas, apuradas ao longo da elaboração progressiva da cultura, é sobretudo um processo agudo de desumanização do homem.

Fornani - regressão psicótica do ego

Para Franco Fornari, “a guerra é compreensível sobretudo como expressão de uma regressão psicótica do ego, socialmente institucionalizada”. O autor italiano, na explanação de sua tese - A guerra e a elaboração paranóica do luto - recorre a argumentos de ordem filo e ontogenética, fundamentando-se em dados referentes aos povos primitivos e em elementos colhidos na observação do desenvolvimento da criança. Termina aplicando sua pauta explicativa às condições atuais da sociedade humana. Opina que os mecanismos profundos, que desde o princípio levaram a espécie a guerrear, permanecem essencialmente os mesmos, não obstante as variações manifestas de contexto histórico. Isto significa que, no âmago da estrutura operativa do fenômeno guerra impera um favor invariável de irracionalidade, que objetiva sua dinâmica na deflexão, para fora, do instinto de morte. Focalizando a tensão persecutória e a tensão depressiva, melancólica, dos povos, sob o imperativo absoluto do instinto de morte, Fornari argumentou com a retrospecção filogenética, a da guerra entre os povos primitivos, e a ontogenética, ou seja, a da angústia do bebê diante de estranhos. Nesses dois enfoques psicológicos, baseou sua teoria da elaboração paranóica do luto como motivação inconsciente da guerra. Na sua concepção, só secundariamente a guerra serve para atacar ou para defender-se de um inimigo externo. A função primária da guerra seria defender-se de um inimigo interno, isto é, de aflições autodestrutivas. O advento da era nuclear, entretanto, deixou em crise essas funções da guerra, que evoluiu definitivamente para a modalidade pantoclástica, de sorte que o ganhar ou perder das guerras antigas perdeu todo o sentido de realidade.

Bouthoul - impulso belicoso da coletividade

Para o sociólogo Gaston Bouthoul, criador da Polemologia, as guerras se originam, de um impulso belicoso da coletividade, “que, por sua vez, estaria em relação com um excesso de varões jovens num determinado grupo”. Complicando-se essas causas demográficas com as econômicas, pois os recursos econômicos disponíveis são sempre balanceados conforme o número de seus usufrutuários, Bouthoul pensa que a guerra é fundamentalmente um infanticídio diferido e a sua função primária seria, portanto, a de exterminar o excesso de varões jovens. Arnaldo Rascovsky aprofundou a tese de Vouthoul, considerando a guerra o mais poderoso instrumento de realização dos impulsos filicidas da humanidade. Para ele, a rebelião dos jovens, que sacudiu tantos países na década de 60, além de suas conotações antigerontocráticas, dirigiu-se principalmente contra a guerra.

Um outro autor, León Grinberg, considera a culpa persecutória inconsciente capaz de levar a condutas extremas, tanto na esfera da submissão masoquista quanto na da violência descontrolada - a guerra.

DE INDIVÍDUO A CIDADÃO DO MUNDO

As aspirações socioculturais do humanismo psicanalítico deverão, além de contribuir para a promoção do indivíduo à condição de cidadão do mundo, ser também as de libertar o homem da destinação do aniquilamento nuclear, ameaça real que paira sobre a espécie, neste fim de século. Já enfatizava Ortega y Gasset, há quarenta anos, que vivíamos para um futuro que acusava, em forma talvez mais extremada que nunca na história do Ocidente, um perfil adulto e dramático, de problematismo radical.

FANTASIAS BÁSICAS - IMAGENS-GUIA DOS HOMENS

Projetada na tela da história, a conceituação de humanismo vem sofrendo variações e ampliando-se, desde a terna visão budista da criatura humana, do civismo confucionista, da riqueza poética e ideológica greco-latina, do humanismo medieval que entesourou o helenismo e transmitiu aos reformadores da Renascença a corrente generosa de revalorização da vida, cujo conteúdo mais significativo consistiu na afirmação contra as barreiras obscurantistas. Essas sucessivas fantasias básicas serviram, por longos períodos, de imagem-guia do homem postulando verdades, fecundando teorias. Mas sempre há chances para mais um visionário. Que importam os desmentidos da realidade, se satisfazemos as necessidades das fantasias subjacentes aos problemas de adaptação, na maioria dos casos orientados artificialmente? Agora, porém, o suspense imposto pela era nuclear obriga a humanidade a uma tomada de posição sem precedentes.

ESCOLAS FILOSÓFICAS E SOCIOPOLÍTICAS

Escolas filosóficas e correntes sociopolíticas diversas têm-se empenhado na procura da formulação perfeita que, incluindo lições do passado, expresse a prospecção de ideais novos, capazes de orientar o homem em meio à conturbação dos três últimos séculos. Assim, no século XVIII o materialismo mecanicista apontou rumos para a sociedade, convicto do predomínio do jogo cego e casual de leis naturais; na segunda metade do século passado, coube ao positivismo dar as cartas: em fins do século XIX e princípios do século XX, o cientificismo onipotente, engastado na moldura da belle époque, oferecia a chave para a solução de todos os problemas inerentes à condição humana, inclusive a angústia ante o porvir.

HUMANISMO PRAGMÁTICO, HUMANISMO CRISTÃO, HUMANISMO SOCIALISTA

No Ocidente contemporâneo alinham-se, cada qual propugnando como exclusiva e definitiva a sua fórmula sociocultural salvadora, o humanismo pragmático, o humanismo cristão e o humanismo socialista. O pragmático e o cristão pretendem uma reformulação da dramática humana, o primeiro visando equilibrar as inter-relações sociais através do existir cotidiano, ligado à realidade do imediato, ao curso da ação. O segundo tenta em vão repor a pessoa humana em face da transcendência divina, numa atitude de negação da decadência do espiritual. Já o socialista é radical, atento às contingências utilitárias da experiência social, advogando uma inversão das normas vigentes entre as classes patronais e trabalhadoras. Na prática, o socialismo tem procurado transformar hipóteses em experiências, de efeitos objetivos na mentalidade das populações. Nesta enumeração de sistemas e teorias, caberia ainda alinhar o Existencialismo, com a sua “prioridade à fenomenologia e à ontologia, em vez de à causação [...]”.

O HUMANISMO PSICANALÍTICO

Quanto ao humanismo psicanalítico, esse, é a própria essência deste trabalho. Entretanto, no decurso da história, nem sempre os teóricos revolucionários foram buscar os vínculos de integração social no estudo dos fatos que caracterizam o presente e de certa forma antecipam o futuro. Seja como for, porém, enfocado de acordo com os preceitos do helenismo, ou com o entusiasmo do devir renascentista, ou com o humor tranqüilo do classicismo, ou com a penetração psicológica dos nossos dias, a base ideológica de todos os humanismos continua sendo o aforismo do sofista Pitágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”.

CLIMA DE INSTABILIDADE

Não obstante as normas superiores de pensamento que chegam até nós através dos sucessivos momentos reveladores de todos os humanismos, predominantemente do greco-latino e do cristão, de mais vasta influência no Ocidente, os povos vivem, hoje, num clima de exasperante instabilidade, atormentados pelas guerras, revoluções, tiranias e numerosas outras formas, manifestas ou mascaradas, de matanças e torturas. Contra esta compulsão a repetir arcaicos clichês da história, agravados pelas facilidades da tecnologia triunfante, o que configura um quadro espantoso, ergue-se, incorporado a outros, o humanismo psicanalítico, ou seja, a aplicação dos conhecimentos em profundidade, que a psicanálise colheu pacientemente no indivíduo, aos dramas coletivos que mais nos afligem. O humanismo psicanalítico é um saber intermediário entre a terapêutica analítica e as ciências do espírito. Da evolução dessa atitude cultural moderna tem-se o direito de esperar que se originem condutas mais flexíveis, menos subordinadas a técnicas desumanizantes, tais como a mobilização da comunidade para o diálogo e a motivação para o exame dos dois pólos da questão, que sempre estão em jogo.

PSICANÁLISE: HUMANISMO REALISTA

Nestes tempos de sociedade de consumo, de produção em massa e de massas biafradas, de predomínio agressivo da automação, retomar a palavra humanismo como mote poderá parecer apenas uma dissertação especulativa, entre tantas. Mas se lhe enxertarmos os conceitos revigorantes da psicanálise, creio que será viável perseverar nesse caminho. Ainda será talvez conveniente enfatizar aqui a convicção de que a psicanálise nutriu de humanismo realista não somente a postura médica, como também enobreceu e alargou o pensamento dos que têm como “oficio” refletir sobre os valores de sentido universal, entre eles a criatividade dos ficcionistas.

“A psicanálise e, na verdade, toda evolução, incluem o controle e a canalização dos impulsos instintivos”. Esta concepção, que pertence a Leo Rangell, encerra um esquema diretor da prática e da pesquisa das ciências do homem, que será tanto mais fecundo quanto maior for a sua infiltração na mentalidade das novas gerações dirigentes. Por ora, tão-somente uns poucos estão aptos para tirar dessa imagem-bússola toda a riqueza que dela poderá fluir.

ANTEVISÃO DO FUTURO

Quando, a partir do Renascimento, a Filosofia e a Ciência começaram a coordenar mais apuradamente os princípios indispensáveis para chegarem ao conhecimento íntimo dos segredos da natureza, entrou em declínio definitivo a imagem do homem inocente, do homem paradisíaco e da bem-aventurança edênica. Esse dado convincente de realidade objetiva adquiriu, na evolução da cultura, extraordinária significação persuasiva contra os criadores de utopias, contra a desrealização da mente humana. Agora, a nossa vida se orienta mais por uma antevisão do futuro do que por um retrospecto das tradições. Eis aí um dos fatores influentes da realidade e da fantasia na conduta do homem contemporâneo.

O MITO DA COMPETÊNCIA ILIMITADA

Na esfera das disciplinas básicas, sobressai, em escala mundial, a operosidade do proletariado intelectual da pesquisa, graças à posse de métodos norteadores e ao domínio de técnicas operacionais. Na atividade profissional propriamente dita, valemo-nos de marcos referenciais teóricos, estabelecidos pelos expoentes. Partindo de observações empíricas, as teorias foram avaliadas pela experimentação, submetidas ao método específico de cada ciência, polidas nas suas inadequações, até finalmente cristalizarem no rigorismo de uma pauta conceitual. Desse modo, faz umas poucas décadas parecia pacífico que o poder inventivo do homem solucionaria toda a problemática que surgisse daí por diante, desafiando a sua capacidade de raciocínio. E o mito moderno da competência ilimitada do técnico substitui o mito originário do homem feito à imagem e semelhança de Deus. Eis aí uma fantasia de forte influência no comportamento do homem contemporâneo.

O PROBLEMA DEMOGRÁFICO

Mas sobrevieram surpresas. Diante do “problema demográfico mundial, que é, na opinião de Julian Huxley, o mais importante e o mais grave de todos os problemas que atualmente pesam sobre a espécie humana”, que orientação nos servirá de bússola? Serão suficientes respostas técnicas? Manobras políticas? Mudanças de regimes? Com efeito, a humanidade, que já vinha assustada por todas as ameaças da era nuclear, começa agora, paradoxalmente, a entrar em pânico em face do relativo baixo índice de mortalidade observado em certas áreas do globo, assim como do número excessivo dos que nascem e sobrevivem, e dos longevos. Certamente, não deveremos cruzar os braços, numa atitude resignada de reconhecimento da nossa impotência. As descrições dos fenômenos manifestos dessa problemática sociocultural, baseadas predominantemente nos números que a estatística fornece, são em geral atraentes. As considerações finais costumam ser de estilo aparentemente objetivo e preciso. E quem as lê chega à conclusão de que, na complexidade técnico-científica atual, a estatística é o máximo, o computador também é o máximo, nesta e noutras matérias. E tem-se a impressão de estarem à vista as medidas preventivas e curativas do mal.

PLURALIDADE DAS IMAGENS

Entretanto, se nos dispusermos corajosamente à pesquisa e se formos, com o auxílio do método analítico, de fora para dentro, à medida que nos afastarmos da realidade tangível e transpusermos os limites da interioridade, penetraremos na esfera subjetiva das vivências profundas e logo constataremos, entre assombrados e perdidos, que, no reino das fantasias inconscientes, onde impera a flutuação constante das emoções e dos impulsos instintivos, a pluralidade das dimensões simbólicas e das imagens alusivas é a nota dominante. É sobre essas sutilezas da atividade intrapsíquica, absolutamente inconsciente, que deverá incidir a investigação do destino humano.

O CONTROLE DA NATALIDADE

Os órgãos responsáveis pelos rumos das nações convocaram a Medicina para defrontar-se com esta esfinge moderna: o controle da natalidade! Acontece que, sentida ao calor da compreensão humanística, a história da feminilidade, entrevista em sua projeção no tempo, adquire, na fantasia, dramatizações de aventura extraordinária. Contudo, não podemos deixar de advertir sobre o caráter antiinstintivo e antimaterial que a sociedade contemporânea adota por vezes. E se levarmos em conta o contato entre essas duas atitudes e a procriação descomedida que redundou na explosão populacional dos últimos decênios, então teremos de pensar nas conseqüências dessa antítese, e uma delas é a violência dos nossos dias.

A SUBSTÂNCIA DO PROCESSO

Assim, pois, todo o empenho do homem contemporâneo deverá ser no sentido de extrair condições de vida do intercâmbio dialético das contradições em conflito no presente. Já estamos dentro desse processo, somos a sua própria substância. Seus fenômenos biopsicossociais assinalam a crise humana dos nossos dias. E em face da realidade nascente, tem-se o direito de temer a eclosão de ansiedades psicóticas coletivas, alimentadas pela fantasia básica de fim de mundo, à medida que as massas, de escassas defesas intelectuais e afetivas, viverem mais imediatamente sob o impacto da ameaça nuclear, da recentíssima bomba de nêutrons, da explosão populacional e da fome, sentidas, todas, no âmbito abrangente de suas numerosas conseqüências nefastas, pois essas duas expectativas de calamidade universal exacerbam tanto o sentimento de culpa persecutória, quanto o pressentimento da mais absoluta insegurança.

PROJETO DE SALVAÇÃO

Mas a essas emoções de espanto, o homem contemporâneo, que apesar de tudo teima em ser homem, contrapõe um projeto de salvação, composto do senso de humor de uns, da intuição poética de outros e do saber científico de uns poucos, destinado a desviar a agressividade humana de seus rumos catastróficos e a canalizar suas energia para outro destino, o de reparar, o de sublimar, o de construir, proporcionando aos povos novas equações de entendimento mútuo, para que a fantasia que amanhecerá no ano 2000 fulgure atraente, sem ser uma simples miragem.


IN: CUNHA, Franklin, SOUZA, Blau, NEUBARTH, Fernando. (coords.)
Médicos (pr)escrevem.
Porto Alegre, Solivros, 1995. p. 97-115.