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A Década de 20* - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios


 

Os dias sombrios e chuvosos sempre me foram propícios ao recolhimento e às evocações. Por isso, vou tentar uma resenha dos acontecimentos marcantes da década de 20, lembrando, naturalmente, os vultos rio-grandenses que atuaram naqueles cenários e que lhes deram cunho histórico. Refiro-me, nesta crônica, ao Rio Grande do Sul, principalmente a Porto Alegre e muito em particular à Rua da Praia. Não só de política e de políticos me ocuparei. Também dos escritores da época. Mas tudo isso baseado apenas na memória, sem recorrer a livros ou jornais daqueles anos, mesmo porque não tenho jeito e paciência, nem tempo para pesquisas históricas.

Em 1920 eu tinha doze anos. De acontecimentos memoráveis, de ordem nacional, recordo de ouvir comentar que Rui Barbosa perdera a eleição presidencial para Epitácio Pessoa. Em 1921 houve o traslado dos restos mortais de Gaspar da Silveira Martins de Montevidéu para Bagé, sua terra natal. O chefe federalista falecera na capital uruguaia, repentinamente, em 1901. A viagem dos restos do tribuno se constituiu numa trajetória gloriosa. Em Porto Alegre, fazia muitos anos que não se via um explodir de emoção cívica e oposicionista tão veemente como naquela oportunidade. Foi o princípio da arrancada antiborgista que se desencadearia no ano seguinte, quando foi lançada a candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil à presidência do Estado para tentar evitar a quinta investidura do Papa Verde, vulgo Chimango, como os adversários , políticos de Antônio Augusto Borges de Medeiros o chamavam desde a publicação do poemeto satírico de Ramiro Barcellos, em 1915. Político, publicista e diplomata aposentado, Assis Brasil escolhera a vida do campo para desfrutar, longe da agitação das metrópoles, trabalhando na agropecuária, os longos anos que imaginava ainda teria pela frente. Preparou-se para isso, erguendo um castelo autêntico, o Castelo de Pedras Altas, nas proximidades de Bagé. Sua biblioteca era impressionante. Os admiradores e correligionários em breve passaram a chamá-lo, com todo o respeito, Cincinato dos Pampas. Entretanto, aos sessenta e cinco anos, teve que encilhar de novo e reiniciar a sua pregação cívica. Aos estudantes que foram convocá-lo, respondeu: "Sou da minha pátria, sou vosso; contai comigo, vamos à ação".

Assis Brasil concorreu ao pleito presidencial do Estado e foi esbulhado. Porém os oposicionistas que o apoiavam, republicanos dissidentes e maragatos, unidos na Aliança Libertadora, não o deixaram mais sossegar no remanso de Pedras Altas e até 1930 foi mais da que chefe da oposição rio-grandense, tornou-se líder da oposição nacional. E depois de 30 seria, como no princípio da sua carreira, outra vez, ministro, embaixador extraordinário na Argentina e nos Estados Unidos, e também deputado constituinte em 34, como o fora em 1891.

Mas o ano de 1922, além de ter sido o ano comemorativo do centenário da independência nacional, foi o ano do episódio dos Dezoito do Forte de Copacabana, entre os quais se encontravam Siqueira Campos, Eduardo Gomes e o civil Octávio Corrêa, gaúcho de Quaraí que, à ultima hora, na afobação de quem quer aproveitar a derradeira réstia de vida, se incorporou aos tenentes rebeldes e com eles foi trucidado a metralhadora minuto depois na areia da praia.

Esse acontecimento deu cunho histórico ao início do tenentismo, porém não ficou limitado àquele quadro de sangue. Também os alunos da Escola Militar do Realengo se rebelaram, sem conseqüências, a não ser para os estudantes que foram expulsos da Escola. Essas manifestações eram restos da Reação Republicana, nome que tomou a coligação das correntes políticas estaduais que sustentaram, em 1921, a candidatura presidencial de Nilo Peçanha contra a de Artur Bernardes. A Reação representou um forte movimento de inconformismo da classe média e uma atitude em defesa do liberalismo político, contra as oligarquias estaduais, enquistadas no poder desde o advento da República. Curiosamente, Borges de Medeiros era um dos esteios da Reação Republicana. Entretanto, quando sobrevieram os surtos de rebelião armada no Rio de Janeiro, no dia seguinte, o ditador dos Pampas mandou publicar no órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense, A Federação, o famoso editorial "Pela Ordem", redigido por Lindolfo Collor.

Aquele editorial histórico, do qual pouquíssimos têm notícia hoje em dia, representou o autêntico balde de água fria na fervura. Posteriormente, a oposição assisista faria largo uso daquele grito pela ordem, como argumento comprovante da falsidade política do Chimango.Tudo isso transcorreu em julho de 1922. Em setembro os horizontes seriam mais claros. O Brasil comemorava, com grandes festejos e milhares de discursos, a começar pelos do presidente Epitácio Pessoa, brilhante orador, o primeiro centenário da Independência.Simultaneamente a todos esses fatos, nacionais e estaduais, acontecia em São Paulo a Semana de Arte Moderna, uma rebelião contra os modelos clássicos da pintura e da escultura, e contra, principalmente, o soneto, a métrica e a rima. Mas a geração que iria desfrutar do influxo iconoclasta do futurismo estava ainda muito verde. Refiro-me, naturalmente, aos jovens intelectuais gaúchos, que recém começavam a exibir sua ânsia de glória literária na passarela da Rua da Praia. Foi só no ano seguinte, e mais abertamente por volta de 1924, que principiaria a repercutir por estas plagas, tão sacudidas pelos ventos da revolução assisista contra o Borges, que os espalhafatosos versos futuristas começariam a escandalizar os escassos leitores dessa matéria, a poesia. E era uma graça ver, na Rua da Praia, nas manhãs ensolaradas de sábado e domingo e nas noites quentes, os moços infiéis à velha arte de poetar cruzando-se com os bravos ainda de sangue quente pelas guerrilhas vexilárias contra a ditadura. Nós, jovens da minha geração, de 17, 18 e 19 anos, não nos cansávamos de admirar os legionários dos dois bandos, os das armas e os do verso. Como era bom admirar!Ao longo daquele decênio, quando menos a gente esperava, se topava com o Augusto Meyer, alto, magro, ruivo, fumando um crioulo, a princípio por esnobismo, depois por vício. Ou então com o Theodemiro Tostes, com o Vargas Neto, com o Darcy Azambuja ou com um dos irmãos Vergara, Pedro e Luís. O que se tornou popular em seguida foi o Vargas Neto, porque soube encaixar bem o modernismo no regionalismo. Pouco a pouco, Augusto Meyer também o faria, porém com um estro superior. E à medida que o decênio se aproximava do ano 30, novos nomes iam se juntando aos dos poetas líderes da poesia modernista, como Mário Quintana e João Octávio Nogueira Leiria. Quintana desde a arrancada inicial se impôs, mostrando que viera das barrancas do Ibirapuitã, não para pousar de poeta na Rua da Praia, mas para ser uma das mais admiradas vozes líricas do país, logo ali, na volta do decênio seguinte, e mais tarde, até agora, para formar com Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade o trio supremo da poesia de língua portuguesa neste século. João Octávio Nogueira Leiria começou a aparecer lá por 1928 e logo chamou a atenção dos que andavam alerta para o movimento literário. Nogueira Leiria entrou de flanco no regionalismo, sob a influência dos Epigramas Irônicos e Sentimentais e Toda a América de Ronald de Carvalho. O poeta logo se firmou com um estilo próprio, que tinha um ímpeto de atropelo de aparte de boi. Abordou novidades no temário regionalista, introduzindo um capricho construtivo e vibrante no verso, em contraste com o ar descansado de Vargas Neto. É deveras uma lástima que um poeta de tal categoria esteja totalmente esquecido, a ponto de nem figurar, de passagem que fosse, numa obra da importância de A Poesia no Rio Grande do Sul, de Donaldo Schüler.Um outro poeta que deve ser lembrado é o Alceu Wamosy. Morto em combate na revolução de 23, sua obra poética, logo difundida, empapou de emoção a alma das gauchinhas. Nos ranchos mais distantes Wamosy era declamado. Sua glória durou talvez cinco anos, mas despertou intensa vibração, meio hipnótica, entre as nossas mocinhas da cidade e da campanha, muitas apenas semi-alfabetizadas. Fenômenos desses mereceriam um estudo mais aprofundado.Mas o grande glorioso daqueles anos foi sem duvida Darcy Azambuja, com o seu livro de estréia, No Galpão, surgido em 1925 e premiado pela Academia Brasileira de Letras, ainda com muito prestígio, apesar do bombardeio do Modernismo.Entretanto, não eram só os intelectuais em voga que despertavam a nossa curiosidade e o nosso entusiasmo quando passeávamos pela Rua da Praia. Também as jovens que saíam da missa na Igreja do Rosário e da Catedral, nos domingos, às dez horas. Ou então, de noite, quando terminava a primeira sessão de cinema. As cores dos seus vestidos e dos seus olhos se misturavam com as luzes das vitrinas. Aliás, sobre a policromia da Rua da Praia o Augusto Meyer tem uma página inigualável.Mas naqueles tempos heróicos, de revoluções estourando a cada ano ou sempre prestes a estourar numa madrugada ou noutra, nem só beldades e poetas circulavam naquela passarela; também os bravos combatentes dos pampas, revolucionários ou governistas, tinham sede de exibição e aplauso. Assim, desde o estudante Carlos Bernardino de Aragão Bozano, voluntário das forças do caudilho libertador Zeca Neto, exibindo uma cicatriz de balaço no rosto que lhe entortara a boca, passando pelos prestígios municipais, até as figuras dos paladinos, Batista Luzardo, Osvaldo Aranha e Flores da Cunha.E isso tudo sem falar nos comícios improvisados e nas correrias para a frente dos jornais, Diário de Notícias, Correio do Povo, A Federação e Última Hora, quando suas sirenes chamavam. A gente que fervilhava naquele trecho, entre a Praça da Alfândega e a esquina da Marechal Floriano, estava ali para isso, para o que desse e viesse: notícia alarmante, discurso bombástico, pró ou contra o governo, o mais das vezes contra. E que decepção quando, após três ou quatro horas de andar cruzando pernas daqui pra lá e de lá pra cá, os transeuntes da vibrante artéria se retiravam para as suas casas, cansados de monotonia, porque naquela tarde não houvera sequer um único apito de sirene!Conta-se de um freqüentador tradicional da Rua da Praia que, estando num jogo de cartas numa peça de fundos duma loja perto da esquina da Ladeira, ao soar a sirene do Diário de Notícias, seus companheiros se levantaram, incontinenti, e correram atrás da notícia. Ele ficou sozinho, baralhando as cartas, com ares de quem baralha os destinos do mundo, imagino eu. Quando os parceiros voltaram e afobadamente lhe disseram, já da porta: "Proclamaram a Republica na Espanha!", ele, sem pestanejar, com o maior desplante, exclamou: "Coitados, daqui a pouco estão lá cantando o João Pessoa!"."João Pessoa" foi o hino revolucionário de 30. Da manha à noite, tocava em todas as lojas da Rua da Praia, nos últimos três meses que antecederam o 3 de outubro de 1930. O episódio anedótico a que me referi ocorreu em 1931, mas ainda dentro do mesmo espírito ruapraieiro da década anterior.A todas essas, o levante do capitão Luís Carlos Prestes, em São Luís Gonzaga; no ano de 1924, se transformara em Coluna Prestes e andara coleando pelos sertões brasileiros. Muitas daquelas sirenadas dos jornais eram referentes à Coluna. Movimentos vivos, aqueles! E contagiantes. Assim, havendo um bolo de trinta ou quarenta indivíduos, bastava um "viva!" ou um "morra!" para que se improvisasse um comício.Também deu muito material para os telegramas, afixados nos quadros-negros das sacadas dos jornais, o caudilho Honório Lemes que, inconformado com o Tratado de Pedras Altas, perpetrou novas intentonas em 24 e 25, acabando prisioneiro de Flores da Cunha, o seu perseguidor .Os últimos dois anos da década começaram tranqüilos. Getúlio Vargas inaugurou seu governo estadual sem oposição e logo sobreveio a Frente Única, isto é, a junção dos tradicionais adversários rio-grandenses em apoio à sua candidatura à presidência da República. O assassinato do companheiro de chapa de Vargas esquentou os ânimos. E a onda de indignação popular veio num crescendo ininterrupto até o grande desaguar das emoções cívicas a 3 de outubro às 5 da tarde.Para todos quantos vivemos o desabrochar da mocidade na década de 20, é inesquecível o calor de vida que respirávamos neste Rio Grande, em Porto Alegre e, especialmente, na Rua da Praia, sala de visita da Capital, lugar de todos os encontros, sem dúvida uma das ruas mais sociáveis, mais namoradeiras e mais políticas do Brasil, hoje completamente descaracterizada. Por tudo isso e muito mais, pelos vultos históricos que discursaram das sacadas dos seus edifícios, pela multidão inquieta que circulava ali ansiando por dias melhores, a Rua da Praia teria de ser o cenário do acontecimento decisivo da Revolução de 30, a tomada do Quartel General.

 


 

* Publicado originalmente em Coletânea da UFRGS, reeditado em MARTINS, Cyro.

Páginas Soltas (ensaios). Porto Alegre, Movimento, 1994 ( Texto integral)