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Antecedentes do gaúcho a pé - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - Ensaios

 

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Começou a nossa povoação quase dois séculos e meio depois que as demais capitanias litorâneas já haviam assumido certos foros de comunidades organizadas. A nossa situação geográfica fez dessa extremadura uma arena de combates, de invasões castelhanas e rechaços de parte dos contingentes que para cá o Reino enviava para defender seus interesses.Essa caudilhagem constante durante quase um século imprimiu à gente destes campos e vilarejos um cenho guerreiro e lhe valeu um emblema de bravura. Concomitantemente, desenvolvia-se a atividade que as condições mesológicas propiciavam. Surgia a pecuária e a rudimentar indústria correlata, a do charque, que elevou aos poucos a futura Província de São Pedro a um nível econômico de razoável prosperidade. Antes predominara amplamente a chamada idade do couro. Com o couro se fazia tudo. A madeira não entrava praticamente em nada, como se não existissem florestas.

A prosperidade a que fiz menção não diz respeito a toda a população. A prosperidade era dos patrões e suas famílias, naturalmente, pois as charqueadas tinham como base humana de produção a mão-de-obra escrava. A gauchada, constituída pelos peões de estância, posteiros, carreteiros, tropeiros e índios vagos, além dos recrutas que serviam nas milícias, mantinha-se sem nenhuma perspectiva de melhora econômica e social, porém não protestava, porque vivia de barriga cheia, a carne e o leite abundavam. E, para cruzar campos, não faltavam cavalos. Um que outro taura, mais avivado da situação, furava o cerco opressivo e acabava se transformando também em criador, identificando-se, sem demora, com a mentalidade dos demais patrões.

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pude seguir de perto e curtir a dolorosa decadência do nosso campeiro, o homem comum do campo, não o patrão e seus familiares, naturalmente. Não irei me repetir. Talvez os senhores conheçam a expressão "gaúcho a pé", que há quase cinqüenta anos cunhei e venho usando como bandeira reivindicatória. Trata-se duma expressão abreviada e metafórica que alude aos efeitos de transformação sofrida pelo campeiro rio-grandense, devida ao deslocamento forçado pelas alterações do gênero de vida que ocorreram no seu ambiente natural. Essa situação acelerou-se nos últimos sessenta anos, mas o processo social já vinha de mais longe, conforme podemos constatar no romance Ruínas Vivas, de Alcides Maya, publicado em 1907. Na realidade, começou em seguida à revolução de 93-95, o que, aliás, não é nada de estranhar. Todos conhecem a complexidade dos processos sociais e sabem das suas multi-causalidades. Por isso me limito aqui a essa breve referência ao tema, por demais abrangente.

Como ficcionista, tenho procurado fazer uma literatura regional, de fundo eminentemente social, sem ser regionalista. O gaúcho a pé - o campeiro, que perdeu o cavalo e a distância - não só constitui uma quebra da continuidade do nosso estilo tradicional de vida, como corporifica uma grave falha no que se refere à nossa integração como povo. Pois no momento em que se expandem as etnias germânica e italiana, sem nenhuma restrição ao cruzamento racial, nos faltou cepa crioula para caldear, nos dias de hoje, o novo tipo continentino. Com efeito, aquela brava gente, que ainda alcancei a ver arriscando-se briosamente nas lides do campo, apagou-se em grande parte no marginalismo suburbano. Foi empurrada, como ressaca humana, para os arredores das cidades, à medida que os latifúndios se estendiam vorazmente. E agora a situação está mais difícil, porque já não se trata tão somente do latifúndio pecuário; entrou em cena, enriquecendo-nos, de uma forma dúbia, o latifúndio agrícola, engolindo as pequenas propriedades e trocando milhares de braços de trabalhadores pelas máquinas de fazer tudo. Ora, dirão, são imperativos da época! Valha-nos o senso humorístico, numa hora destas, porque se trata de uma das tantas vitórias absurdas do homem moderno. Mas contra essa realidade trituradora, nada podem fazer os meus protestos humanísticos, nem o pensamento especulativo dos físicos. A biografia de Einstein que o diga. Sobretudo a sua correspondência com Freud sobre a guerra.

O resultado trágico da gula expansionista dos latifúndios modernos, atualizados, empresariais, sobre as massas camponesas despreparadas, é essa afluência constante de migrantes para as cidades. Mais propriamente para esses conglomerados informes que asfixiam os centros urbanos e nos quais tudo é sub. Sub-alimentação, sub-habitação, sub-emprego, sub-higiene, sub-ensino. Só são superlativos os achaques do corpo e da mente.

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Diante disto, o que fazer? Aceitar o desafio da complexidade de problemas que assoberbam os povos, sem preconceitos ideológicos. Para essa obra, os pensadores, os construtores do futuro, como os físicos, necessitam de um mínimo de estabilidade constitucional de seus respectivos países. A nós, intelectuais e professores, de qualquer recanto do universo, compete sobretudo estimular a capacidade criadora dos jovens, prevenindo-os contra o engodo da pseudocultura, que apela pernosticamente para uma terminologia esdrúxula para esconder a ignorância. Devemos apontar aos jovens o que está ao alcance de suas possibilidades pessoais e de ambiente. Do contrário, iríamos apenas exacerbar sua angústia, provocando-lhes um opressivo sentimento de impotência.

Excertos de "O mundo em que vivemos" In: O mundo em que vivemos.
Porto Alegre, Movimento, 1983. p.109 e segs.
(Texto de aula inaugural no Instituto de Física da UFRGS, março de 1981).

 

Links Relacionados:
- A Representação Ficcional do Rio Grande do Sul na Obra de Cyro Martins - Antecedentes do gaúcho a pé
- O drama da fronteira e fronteiras culturais
- Fronteiras Culturais (Brasil - Uruguai - Argentina)
- O Mundo em que vivemos - Humanismo Psicanalítico