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Um Cyro Martins ou muitos?* | Imprimir |  E-mail

David Epelbaum Zimerman**


Convidado para fazer uma apresentação de Cyro Martins, por ocasião dessa justíssima homenagem que, neste momento, fazemos em comemoração ao seu centenário de nascimento, a primeira imagem que surgiu em minha mente, relativa à pessoa de Cyro, foi a de um arco-íris. Inicialmente estranhei e, logo após uma breve reflexão, dei-me conta de duas razões do porquê do surgimento desta imagem. A primeira é porque eu sinto um impacto estético muito especial quando contemplo a beleza pictórica de um arco-íris e, da mesma maneira, algo embevecido, em qualquer circunstância, eu sempre contemplava a beleza interior de Cyro Martins. A segunda razão consiste no fato de que a física explica o fenômeno do surgimento do arco-íris em dias de chuva, com a presença do sol,como sendo resultante da refração da luz branca, quando atravessa uma camada aquosa. Nessa situação acontece que a luz branca se decompõe nas sete cores parciais (vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta) que, conjugadas, (VAAV: de vermelho até verde; e VAAV: em sentido contrário, de violeta até verde), compõem a totalidade da luz branca (o leitor pode experimentar riscar uma folha de papel em branco, com os sete lápis das aludidas cores, uma em cima da outra, e terá como resultante uma única cor branca).

Com essa metáfora das sete cores elementares (sem levar em conta a dimensão oculta do "infra-vermelho" e do "ultra-violeta") eu pretendo significar que também a luz do brilho solar que resplandecia do doce olhar de Cyro Martins, do seu permanente "meio sorriso" e das feições dele, desdobrava-se num policromatismo, de modo que cada uma das diferentes cores que emanavam da sua pessoa dele,constituía um Cyro com peculiaridades próprias e, sempre, totalmente autênticas.

Completando essa metáfora, eu entendo que são diversos os "Cyros Martins": o homem, o amigo, o médico, o psiquiatra, o psicanalista, o escritor, o grupoterapeuta, o interlocutor (que sabia escutar), o prosador (sempre bem humorado, espirituoso, contador de casos que prendiam nossa atenção e interesse), o pensador, o bom pai, esposo e amigo... Todos esses múltiplos aspectos conviviam harmonicamente, em um único ser humano: Cyro, o humanista.

Deste modo, para ser mais justo com o querido Cyro, nessa singela homenagem,optei por criar alguns cenários que visam realçar, separadamente (não obstante elas serem inseparáveis) cada uma de suas brilhantes cores.


Cenário 1 - Cyro Martins, o Homem

Os que tiveram a oportunidade de ler referências biográficas acerca das vicissitudes da vida e obra de Cyro Martins (uma excelente fonte para tanto, é a do livro "Cyro Martins 90 anos", editado em 1999 pelo Instituto Estadual do Livro, que foi organizado por sua amorosa filha Maria Helena, com a contribuição de um grande número de colaboradores, amigos de Cyro) hão de se deleitar com a grandeza de nosso homenageado.

Não conheço nenhum desafeto de Cyro, pelo contrário, tenho a convicção de que, sem exceção, ele foi e continua sendo, amado, louvado e reverenciado por todos que tiveram a fortuna de lhe conhecer e conviver com ele. Uma característica marcante do homem Cyro é a de que ele sempre tinha uma palavra de amabilidade, um elogio à beleza, às vestes, ao penteado, ou a qualquer outro predicado de alguma mulher (sem a mínima intenção de qualquer forma de sedução ou de interesse pessoal), ou uma constante saudação com louvores a algum sucesso que algum de nós tivesse conquistado, ou também, demonstrando uma privilegiada memória, ao perguntar sobre algum fato já bastante passado, mas ainda significativo para qualquer um de nós, e assim por diante.


Cenário 2 - Cyro, o amigo

O meu primeiro encontro pessoal com Cyro deu-se no Instituto da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,. em que ele era um dos psicanalistas didatas queministravam Seminários para nós, os candidatos. O maior legado que herdei de nossos seminários foi o seu modo respeitoso, carinhoso, com um autêntico interesse pela teoria, técnica e, principalmente, pelos pacientes que discutíamos.

Destaco este aspecto porque embora eu não tivesse sido paciente do Cyro e tampouco seu supervisionando, tenho convicção que ele foi importantíssimo na minha formação como psicanalista, porque eu o adotei como um dos meus mais significativos "modelos de identificação". Nossa amizade começou a se aprofundar quando um interesse comum nos uniu bastante: na época eu presidia a Sociedade de Grupoterapia Psicanalítica de PortoAlegre. e, diante do meu esforço de reerguer essa Sociedade que praticamente estava "falindo", contei com o apoio total e irrestrito do querido mestre Cyro, nessa árdua tarefa, numa época em que, por razões que, aqui, não vem ao caso, a SPPA fechou as portas de sua sede para o movimento da grupoterapia psicanalítica.

Aproveitei o fato de que, na época, eu também presidia a Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul e, assim, conseguimos fazer as reuniões na sede da Amrigs (quando sua sede ainda era na rua 10 de novembro) e, por mais frio ou tempo chuvoso que fosse, em nenhuma vez Cyro deixou de me prestigiar com a sua presença e participação ativa. Também recordo que com alguma frequência nos encontrávamos nas cadeiras cativas do Estádio Olímpico, eu com meus filhos e Cyro, geralmente, com seu filho Cláudio, ocasiões em que sugeríamos "brilhantes" soluções para os problemas do nosso Grêmio, inclusive com a ideia de promovermos reuniões de "Grupos de Reflexão" com a cúpula diretiva.

Em algumas oportunidades, como a realização de Congressos (recordo de Buenos Aires, Rio de Janeiro, Gramado, Jerusalém, etc.), nossa amizade foi-se solidificando, juntamente com os passeios e charlas com as respectivas esposas, Zaira e Guite. Lembro de uma caminhada de nós quatro, "gaúchos a pé", por toda a extensão da Av. Nossa Sra de Copacabana, em que a resistência de Cyro superou, de longe, a nós, os três restantes, que já estavam num total bagaço, enquanto ele se mantinha lépido e fagueiro, a nos incentivar para caminharmos "só mais uma quadra", e depois outra mais, e assim ia nos levando. Porém, o ponto forte de nossa amizade se consolidava nos períodos de férias de fevereiro, que ambos passávamos na praia de Atlândida e dessa forma nos visitávamos em nossas respectivas residências, em que Zaira se esmerava em jantares inesquecíveis, enquanto, em outras ocasiões, em minha casa, eu é que assava um "churrasquinho" para seu verdadeiro deleite. Após os aperitivos e a comida, ao ar livre, saboreando o luar, trocávamos ideias as mais variadas, com uma ênfase maior nas excelentes potencialidades da utilização da dinâmica dos grupos em geral, ainda muito mal e muito pouco empregadas pelas instituições responsáveis pela saúde mental.

Por ocasião do lançamento de um livro -"Como Trabalhamos com Grupos" -, que escrevi juntamente com Luis Carlos Osório, ambos fizemos questão de convidar Cyro Martins para ser nosso prefaciador e, aproveitando o motivo, já faríamos uma visita porque sabíamos que ele estava doente, mas não tínhamos uma ideia da gravidade. Como sempre, Cyro nos recebeu muito bem, aparentemente satisfeito e, embora emagrecido, tinha uma boa aparência e vitalidade. Disse ter-se sentido honrado com o convite e, na hora, planejou concluir o prefácio num curto espaço de tempo. A doença progrediu de forma galopante e, é óbvio, Cyro não pôde fazer o prefácio, de modo que só nos reencontramos no cemitério, no triste dia de seu enterro.


Cenário 3 - Cyro, o escritor

Juntamente com a cor (do aludido arco íris) do psicanalista, também a cor do escrito era a sua mais querida face colorida, e só isso, mais a coleção quase que completa que eu tenho de sua obra, já permitiria que eu me estendesse longamente sobre essa talentosa e brilhante faceta literária de Cyro. Porém, num esforço, vou renunciar ao desejo de me aprofundar no Cyro -Escritor, visto que no livro antes mencionado -"Cyro Martins 90 Anos"- constam muitos brilhantes artigos e depoimentos de notáveis literatos, que perfazem um justo e excelente panegírico da imensa obra -quantitativa e, sobremodo, qualitativa - do inolvidável Cyro .

No lugar disto, vou relatar um breve episódio que eu testemunhei, vendo e sentindo "nas carnes" como Cyro trabalhava na escrita de um texto, mercê do usode um estilo literário, genuinamente seu. Estávamos na praia de Atlândida, nas férias de um mês de fevereiro, eu concluindo o meu trabalho para obter o título de "Membro Associado" da SPPA, e Cyro, em sua casa, trabalhando em um dos seus mais belos livros. Concluído o meu trabalho, algo constrangido (eu sabia que ele estava totalmente envolto em seu novo romance) fui a sua casa perguntar se ele poderia achar um tempinho, no "rabo de suas horas", para dar uma "rápida olhadinha" no meu trabalho. Ele sorriu, deixou o meu trabalho ao seu lado, disse que "sim, claro", emendou com outros assuntos amenos e quando nos despedimos, ele disse: passa aqui na 6a (dois dias depois).

Quando cheguei pontualmente na 6a, ele me recebeu na porta, e foi direto no assunto: Já li todo o teu trabalho, muito atentamente. Posso fazer algumas sugestões, não tanto no conteúdo, mas, sim, na forma? Diante da obviedade de minha resposta afirmativa, em pouco mais de 40 minutos, recebi de Cyro a melhor e mais importante lição de redação que tive na minha vida. Lembro, como se fosse hoje, Cyro empunhando uma caneta vermelha, numa impressionante agilidade, ia marcando algumas (muitas) passagens do texto, e me consultando coisas como: se não ficaria melhor se eu não repetisse tantas vezes um, mesmo, determinado vocábulo; apontou  diversos trechos em que me assinalou que muitos dos teus parágrafos são demasiado longos e podem cansar ou desconcentrar o leitor. Queres ver? Vamos tomar este parágrafo: vamos colocar um ponto aqui; agora um outro ponto aqui! Pronto: dissemos a mesma coisa com três frases curtas. Que achas? Eu estava perplexo: o trecho ficou leve, claro e agradável. Parecia que eu estava diante de um mágico que fazia prestidigitações. Recomendações equivalentes a essas, como a magia da colocação certa das vírgulas, se repetiram inúmeras vezes e, cada vez mais, o trabalho, sem nada alterar na sua essência, foi se transfigurando em sua forma e apresentação.

Em outra importante passagem do trabalho (tratava-se de um paciente masculino com esporádicas atuações homossexuais) ao pedir certos esclarecimentos, teci considerações verbais que Cyro considerou muito significativas e me perguntou porque não as incluí no texto escrito. Diante da minha resposta de que eu estava cauteloso de como seriam recebidas as minhas ideias algo audaciosas e preferi ser "politicamente correto", Cyro me propiciou outra magnífica e inesquecível aula para a minha condição de ser analista e como pessoa: a de ser verdadeiro, autêntico e responder com dignidade a qualquer, hipotético, ataque verbal que me fizessem! Obrigado, meu velho amigo Cyro, em muitos dos livros que posteriormente eu escrevi, tu estavas muito presente.


Cenário 4- Cyro, o médico, o psiquiatra, e seu trabalho no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP)

Cyro Martins nasceu em 1908 em Quaraí. Aos 19 anos ingressa na Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Formado em medicina, retornou a Quaraí em 1934 para praticar a medicina, mais movido pelo seu humanismo pela assistência médica a pessoas carentes e humildes, do que propriamente, para fins de prosperar economicamente. Em 1937 vai estudar Neurologia no Rio de Janeiro sendo que em 1938 retorna a Porto Alegre, presta concurso (foi brilhante) para a Psiquiatra do Hospital São Pedro (HPSP) e abre seu primeiro consultório. Em 1951, já casado com Zaira, vai fazer a sua formação psicanalítica em Buenos Aires, de onde retorna em 1955, já como Membro da Associação Psicanalítica Argentina (APA). No HPSP Cyro, nos poucos anos em que lá trabalhou, deixou contribuições importantes e marcantes, mercê de sua criatividade, postura humanística e um carisma que serviu de inspiração para muitos jovens médicos ingressassem no mundo da psiquiatria.

Passo a palavra a Sérgio Paulo Annes - grande e prestigiado psicanalista - que (em: "Cyro Martins 90 anos" -pg. 125) no trecho por mim pinçado, assim registra a passagem de Cyro pelo HPSP: ...O Cyro me convidou para, como observador, secretariar os grupos de psicoterapia analítica que iniciara no Serviço Aberto do Hospital São Pedro. Eu anotava sessões para que ele, com o material colhido, elaborasse seus trabalhos.. Dizia o Cyro que os grupos funcionariam como a última barreira às reinternações ou mesmos internações (o grifo é meu). Prossegue Sérgio Annes: Os Grupos eram atendidos na Divisão Pinel do HPSP. Nestes grupos o Cyro admitia observadores que, como eu, procuravam se aproximar dele para continuar o que eu, então, chamava de "formação psiquiátrica artesanal".


Cenário 5 -Cyro, o psicanalista

Este cenário comportaria um volume inteiro se dedicássemos um aprofundamento de Cyro Martins na importância de seus inúmeros artigos publicados, suas brilhantes apresentações nos mais diversos Congressos, locais, nacionais einternacionais, seus inúmeros livros com um enfoque em que, de forma manifesta ou nas entrelinhas, é possível perceber o teor psicológico do enredo e dos personagens. Só para exemplificar, em 1981, já destacado e ativo participante do movimento da medicina Psicossomática, Cyro publica Perspectivas da relação médico-paciente, talvez a primeira obra em nosso meio a fazer a importantíssima ligação mente-corpo e, sobretudo, a ênfase na relevância, no ato médico, do vínculo afetivo do médico com seus pacientes e respectivos familiares.

Aqui, entretanto, pretendo realçar em Cyro, a "Pessoa Real do Psicanalista"- aspecto que ganha um crescente reconhecimento na psicanálise contemporânea. Assim, sem jamais perder o seu "lugar, papel e função" de psicanalista, creio que Cyro, com a sua bondade, espontaneidade, flexibilidade e tolerância, foi um dos pioneiros a flexibilizar e a desmistificar a tão controvertida questão de se o tradicional método psicanalítico é por demais rígido, ou não.


Cenário 6 - Cyro, o humanista

A palavra "humanista" não quer dizer "bonzinho". Assim, não obstante suas características naturais de ser uma pessoa simples, modesta, amável, um moderador e, sobretudo, de uma notória bondade, na situação analítica, quando necessario , Cyro sabia fazer frente às inevitáveis frustrações que todos os pacientes, de uma forma ou outra, passam no curso de um longo tratamento psicanalítíco. A análise das frustrações, acompanhadas de desilusão, decepção, ressentimento, etc., propicia uma alavanca para o crescimento.

O humanismo de Cyro também se traduzia na sua conduta sempre ética e discreta (jamais o vi jactar-se de que tal ou qual figura importante era seu paciente), porém a característica maior de seu humanismo, ancorada na sua forte crença no amor construtivo (porém sempre atento à agressão destrutiva), se refletia numa constante preocupação com as condições de vida da humanidade, no futuro.

Extraí um trecho (Cyro Martins 90 anos —pg. 28) em que, ao discorrer sobre o "humanismo psicanalítico", o próprio Cyro assim se posiciona: "O humanismo psicanalítíco é um estímulo a que pensemos sem metafísica sobre a condição do homem em face do universo e sobre a verdade das relações humanas. Portanto, é uma tomada de posição contra o falso, o espúrio, o arbitrário, várias vezes disfarçados de pensamento científico "

Para concluir, creio que a transcrição do poema "O Terapeuta" , escrito por Cyro Martins, sintetiza tudo o que tentei passar das suas múltiplas faces.

O Terapeuta

"Pois fica decretado

a partir de hoje

que terapeuta é gente também.

Sofre, chora,

ama e sente

e, às vezes, precisa falar.

O olhar atento,

o ouvido aberto,

escutando a tristeza do outro,

quando, às vezes, a tristeza

maior está dentro do seu peito.

Quanto a mim,

fico triste, fico alegre

e sinto raiva também.

Sou de carne e sou de osso

e quero que você saiba isto de

mim..

E agora,

que já sabe que sou gente,

quer falar de você para mim? "


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* Conferência em homenagem ao centenário de nascimento de Cyro Martins no Hospital Psiquiátrico São Pedro.

** médico psiquiatra e psicanalista, autor de inúmeros livros sobre psicanálise, grupoterapia , saúde mental .