X Jornada CELPCYRO

img banner

Informe CELPCYRO

Cadastre-se e receba nosso INFORME
Nome
E-mail*
Área de Atuação

Redes Sociais

  • Twitter
  • Windows Live
  • Facebook
  • MySpace
  • deli.cio.us
  • Digg
  • Yahoo! Bookmarks



Novos Autores, Novas Editoras - A Literatura Gaúcha se Renova | Imprimir |  E-mail

Léa Masina



A literatura gaúcha contemporânea vem obtendo um destaque merecido no conjunto da produção literária nacional. Isso, em meu entender, relaciona-se com o interesse que sempre se registrou, no Rio Grande do Sul,  pela cultura,  chegando-se mesmo a afirmar, há algum tempo, que havia no estado um circuito completo de produção e consumo. Escritores sul-rio-grandenses publicavam seus livros por editoras locais, para serem lidos por leitores do próprio Rio Grande. Essa tendência está mudando: muitas editoras do centro, como a Record, por exemplo, ou a Companhia das Letras e outras têm mostrado interesse em editar os livros dos nossos escritores. Assim, um autor que desponta nestes meios não raro é convidado, por outras editoras de grande expressão nacional, a publicar sob novo selo. É o caso, por exemplo, do gaúcho Amílcar Bettega, que publicou seu primeiro livro, “O vôo do trapezista”, pela Editora Movimento, de Porto Alegre, e depois lançou os contos de “Deixe o quarto como está” pela Companhia das Letras. Também é o caso de Altair Martins, antes vinculado à WS, cujo último livro, o premiadíssimo romance “A parede no escuro”, foi recentemente publicado pela Record. Isso, no entanto, é trazido apenas para ilustrar a ideia de que os nossos escritores e suas obras estão dando passos largos no sentido de ampliar o alcance da literatura gaúcha numa perspectiva nacional.


Essa perspectiva, sem dúvida, tem a ver com novas concepções editoriais. Nesse sentido, há pouco tempo, surgiram, entre nós, duas editoras que merecem destaque pela qualidade de seus produtos e pela rapidez com que vêm alcançando suas metas, dentre as quais o reconhecimento do público leitor, o respeito dos escritores e a presença constante nas livrarias mais visitadas. São elas a “Não Editora” e a recente “Dublinense”, ambas tendo à frente, dentre outros sócios, um escritor de talento, Rodrigo Rosp.


Falta dizer que muitos dos autores que escrevem no Rio Grande do Sul procedem de oficinas de criação literária, do que resulta uma consciência mais apurada do fazer literário e a consequente qualidade de texto. O caso de Rodrigo Rosp é exemplar: escritor, autor de “A virgem que não conhecia Picasso”, lançou recentemente “Fora do lugar”, um livro revolucionário pelo humor e pela desconstrução do óbvio com que nos habituamos a conviver, lançados ambos pela “Não”. Essa editora, que surgiu de muitas discussões, algumas no âmbito dos seminários de criação literária que coordeno, tomou impulso e passou a editar muitos jovens autores de sucesso, como Reginaldo Pujol Filho, Carol Bensimon, Diego Grando, Samir Machado de Machado e Antonio Xerxenevski, dentre outros, além de três números de “Ficção de polpa”, cuja temática surreal dos textos flerta com a mídia moderna, ao mesmo tempo em que recupera, de forma pós-moderna, sugestões dos quadrinhos e seriados de antigamente.


Sem dúvida, “Ficção de polpa” criou a tônica da “Não Editora”. O assédio dos novos, com diferentes propostas, levou Rodrigo Rosp a criar a recente “Dublinense”, com vistas a acolher outros talentos. Dispondo de uma linha editorial mais arejada e leve, sem os fundamentos revolucionários da “Não”, a “Dublinense” vem publicando livros excelentes, como o ótimo romance de Cíntia Lacroix, “Sanga Menor”: um pequeno mundo onde as coisas acontecem, resgatando a mesmice da vida interiorana pela inserção do insólito e do inesperado. Sem pretender-se um texto fantástico, o livro reúne personagens que, ao entrecruzarem ações, desejos e pensamentos, formam uma trama sui-generis, não raro poética, que prende a atenção do leitor desde o primeiro momento. Personagens estranhas e surpreendentes no que fazem e no que dizem, como o bizarro Lirinho, Tia Margot, o primo Gilberto, Rosaura e a especialíssima Caetana dos Fantoches, por serem inusitadas, contagiam de humor e drama o texto, tornando único o relato.


Também leva o selo da “Dublinense” o segundo livro de contos de Luiz Filipe Varella, “Um guarda-sol na noite”, cuja leveza de estilo busca o coloquial e surpreende, fazendo emergir situações especiais de um previsível cotidiano. A temática recorrente do contista são as relações familiares, o dia a dia dos empregos, dos bares e das ruas da cidade, e, sobretudo, o convívio doméstico, o que favorece a identificação imediata do leitor com a matéria narrada. No entanto, como ocorre nas ficções da melhor qualidade, a rotina apenas mascara o mal que se esconde sob a previsibilidade aparente. E, assim, irrompem os conflitos, que se nutrem de desejos, os crimes e as pequenas perversões com as quais convivemos sem, por vezes, sequer nos darmos conta. E Luiz Filipe Varella surpreende ao recortar o instante à matéria comum da vida, destacando-o para transformá-lo em impacto e surpresa.


Dentre outros lançamentos, é preciso salientar, ainda, a publicação de “Mar quente”, de Enio Roberto, um livro de contos raros, alguns deles antológicos. Amadurecidos pelas revisões sistemáticas e pelo grau de exigência do escritor, os textos trazem a marca comum da inconformidade: com a forma, em primeiro lugar, eis que a linguagem do contista é imprevisível, muitas vezes alicerçada na construção de uma sintaxe que beira as livres-associações. A temática variada revela personagens quase surreais, dentro de uma lógica narrativa peculiar.Os contos de Enio abrangem temas que vão desde a mediocritas familiar, até os conflitos da Guerra do Vietnã, quando o leitor assiste ao desespero do soldado, quase a morrer com os pés sobre a mina inimiga. O que faz crescer o interesse dessas narrativas são também os instigantes monólogos em uma linguagem habilmente trabalhada, bem como as soluções inesperadas que o contista inventa para dar verossimilhança às histórias que narra. Mas o interesse maior que advém dos contos de Enio reside na capacidade de criar tipos humanos circulando em seus “habitats”, como se fossem animais que o contista espreita em momentos de risco, quando o instinto os leva a agir matando, negando, mentindo, se debatendo contra a enxurrada de humilhações e torturas com que a vida, com frequência, brinda os habitantes humanos da terra. Dos conflitos familiares às elucubrações surreais, o leitor é chamado a interagir com o texto, completando as entrelinhas, escolhendo caminhos, optando por criar os significados mais adequados às propostas narrativas. Vale à pena investir nesse processo: no mínimo, encerra-se o livro com fortes impressões e diferentes questionamentos.


Enfim, para completar este texto que se pretende uma breve crônica de mudanças, é preciso dar um destaque especial ao romance “Uma leve simetria”, da “Não Editora”. Seu autor, Rafael Bán Jacobsen, já fora premiado com o “Açorianos”, pela publicação do romance gótico “Solenar”, pela Editora Movimento. Sem dúvida alguma, é leitura obrigatória pela sensibilidade com que o autor transita por um viés narrativo complicado que são as relações homoeróticas, ou homoafetivas, dentro de uma comunidade judaica. O amor de Daniel e Pedro é narrado numa leve simetria com o texto bíblico em que se registra o afeto entre Jonatã e David. Pleno no domínio de sua linguagem, Rafael alcança momentos sublimes, sem jamais escorregar para o panfletismo ou para a caricatura.

Vê-se, pois, por esses poucos exemplos, que a literatura gaúcha se renova: novos talentos, muitas perspectivas, muitas editoras, entusiasmo pleno. Isso já vem sendo, inclusive, reconhecido pela mídia do centro do país. Vida longa a eles e reconhecimento aos méritos de iniciativas renovadoras e arejadas!


Porto Alegre, março de 2010